Das paisagens que nos espelham

O que pretendo é ensaiar. Se ensaio, não há atos e pensamentos definitivos ou  concludentes, mas sim, ideias que pertencem à agoridade, ao tempo de ensaio.  Guerrilha do pensamento. Sem o pluralismo das narrativas, não poderíamos entender  o privilégio metodológico da descontinuidade. 

Dito isto, hoje, não é mais possível ancorarmos na ideia de que cidade e natureza são  instâncias separadas. Se a sobrevivência da humanidade estiver na linha do horizonte,  há de se avançar, necessariamente, muito além do Antropoceno. E tudo indica, como  veremos, que estamos ainda muito longe de ações efetivas e afetivas que demonstrem  o contrário.  

Tomemos a cidade como um panorama: lugar do acontecimento cultural e cenário de  um efeito imaginário, enquanto processo de acumulação de imagens. Assim, a cidade  mescla hábitos, percepções, histórias. Podemos dizer que uma cidade enquanto espaço  vivido contem camadas que constantemente dialogam entre si e cujo somatório define  uma cultura. Adentremos então à nossa premissa: uma paisagem – uma cidade, por  exemplo -, é um construto sociocultural e, por isso, reflete o que somos. Se a paisagem somos nós, o que podemos pensar, a partir dela, sobre nós? Adotemos a cidade de  Belo Horizonte e vejamos o que podemos encontrar na sua paisagem que confirme a  nossa premissa. 

Sigamos pela lógica do flanêur, aquele que sai sem rumo pela cidade e, com o que vai  encontrando pelo caminho, procura, imageticamente, escrever aspectos que o cotidiano  não se deixa revelar. Assim, descobrimos que a natureza existe, persiste, insiste e  resiste na cena urbana. Tal descoberta resultou em uma estranha e triste cartografia,  registros de topias insanas: árvores torturadas, tocos de árvores mortas, rio de estranho 

e letal caldo, ruínas da cidade.  

Nesta cidade, milhares de árvores foram plantadas em minúsculos canteiros cercados  por aros de aço. As árvores foram crescendo e suas raízes passaram a disputar espaço  com o aço circundante. Muitas delas são flamboyants, árvores que exigem grandes  espaços para se desenvolverem. Só assim podem mostrar toda a sua imponência e, na  primavera, sua exuberância floral. Contudo, essa dialética entre a natureza e o artefato,  entre a planta e o aço, resultou em uma estética que brota das entranhas da terra, em 

surreais alegorias que não estão no registro nem do orgânico e nem do inorgânico, mas  naquilo que denominamos in[NO]organic.  

Seguindo nossa deriva, nos deparamos com outra estranha paisagem: milhares de  tocos de árvores. Cada árvore é um universo que existe e morre de uma maneira  singular. As seivas secretadas por cada uma delas são diferentes e isso explica os seus tons de cores diferenciados. São como halos de suas vidas perdidas e que subsistem  enquanto memória. É como se as árvores se negassem a morrer, deixando com o  testemunho do que lhes sobrou, um certificado de um mundo mais vazio e, por isso, com menos possibilidades. Como são milhares, paradoxalmente, transformaram a  cidade em um imenso pavilhão de arte contemporânea. 

Mas continuemos a nossa flana. Na cidade há inúmeras casas de comércio que vivem  exclusivamente da compra e venda de azulejos e pisos de demolição, aos quais se  aquietam depositados e classificados em labirínticos corredores. A diversidade e o  conjunto desses espaços formam um inominável patrimônio (i)material da cidade. Mas,  se não houvesse tais espaços, que dialogam texto e contexto em uma singular  circularidade, qual destino teriam esses pequenos fragmentos de memória que insistem  em viver à procura de novas recombinações, e, consequentemente, de novos devires? 

Seriam então cemitérios? Cemitérios são espaços onde a sociedade reclama e  proclama os seus mortos. São neles que jazem memórias ocultas e lembranças ternas  e amargas. Mas se assemelham também a bibliotecas devido à sua sistemática:  disposição espacial das estantes com critérios classificatórios indecifráveis. E se  assemelham também a museus, uma vez que há ali, arroladas e armazenadas, a  memória (i)material de milhares de lembranças terrenas de antigos habitares.  Certamente, também, um museu involuntário, como se fosse um ato falho coletivo. Se  não pertencem a uma categoria determinada, como classificar o inclassificável?  

Apesar do avanço do nosso mal-estar, continuemos um pouco mais com o flanêur.  Subitamente, encontramos um rio-dor que sangra e fede. À sua margem, usuários  extasiados exercitam-se. Não há mais contradição no mundo dos êxtases decadentes.  Morto o rio-dor não está. Há incalculáveis bactérias em suas águas e garças e urubus  em suas margens. Portanto, não é natureza morta, e, sim, o contínuo deslizar da  estética perversa, da metafísica da destruição.

O “rio” é emblemático na questão que envolve a água nesta cidade e no resto do país.  Embora já seja uma prática ultrapassada dentro da prática urbanística mundial, por aqui  ainda insistimos na técnica de tornar os rios “invisíveis”. Kafkianamente, é retido em  algum ponto de sua trajetória e, depois de passar por um severo processo físico 

químico, volta às torneiras dos domicílios. À guisa de conclusão, podemos dizer que as paisagens [in]visíveis vistas aqui nos  remetem à premissa inicial: se somos paisagem e vice-versa, como sair deste nó górdio que nos espelha? Talvez pela estética da reconstrução, a partir dos elementos simples  que estão, estavam e estarão aí. Mas não é somente apanhá-los. É pensar a  emergência, tanto no sentido de que é extremamente necessário ao momento, quanto  no sentido de trazer algo novo. A natureza não é nem generosa nem hostil. Ela é o que  apreendemos dela, do que projetamos nela. Se apreendermos a sua hospitalidade,  assim o será. Se apreendermos a hostilidade, assim também o será, no sentido de  imprimirmos na natureza essas projeções. A priori sabemos apenas que seguir o  caminho da hostilidade é flertar com a autoaniquilação da espécie humana.


Reginaldo Luiz Cardoso é pesquisador e fotógrafo autoral, com doutorado em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Atualmente faz pós-doutorado junto ao INCT LabEspaço/IPPUR/UFRJ/FAPERJ. Desenvolve pesquisas que analisam a interface do urbano e os cerceamentos sofridos pelas subjetividades contemporâneas presentes nas cidades. Enquanto fotógrafo tem buscado essa mesma interlocução ao registrar o inusitado ambiente urbano contemporâneo. Dentre outros, foi premiado no 39º Le Plus Grand Concours Photo du Monde – Categoria ‘Graphisme & Archicteture’. PHOTO Magazine (Paris, France, 2020) e o VIII Concurso de Fotografia ArteSoSlidario/UNICEF- Espanha (2022). 



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Um comentário

  1. Belíssimo texto!

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