Bebidas, metafísica e o medo de dormir

Voltei a ter medo de dormir depois dos 30. Não é medo do escuro, é medo de dormir. É uma das lembranças mais antigas que eu tenho, eu devia estar com uns três anos. O escuro não era muito amigável. Mas fechar os olhos, e pra que fechar os olhos no escuro?, e dormir, ir sabe-se lá pra onde, e se eu não acordasse? Com certeza foi por algum pesadelo, que já nem lembro. 

Também não lembro a última vez que tive tantos pesadelos seguidos. Como bom pisciano, fico atento aos meus sonhos, buscando sinais, significados, antes de me distrair com outra coisa e esquecê-los. E estes foram bem significativos. 

Depois de um mês sem ver o Cesar, ele me aparece em sonhos. Justo quando decido dar um tempo, meu subconsciente me dá uma rasteira. Eu e ele estávamos em uma casa com uma decoração bem anos 70, divã de couro marrom, aqueles móveis compridos com portas de vidro guardando garrafas de bebidas e taças com relevos geométricos. O apartamento de uma amiga em comum (que só existia ali). Ela era mais nova, devia ter uns 21 no máximo. Cesar olhava pra mim, cochichava no ouvido dela, que ria. A mão dele na cintura dela, era bem claro onde aquilo ia parar, minha boca abre descontrolada, “Você nem gosta de mulher!”, e ele ri, conduzindo a garota. Uma senhora elegante, usando uma echarpe esvoaçante, entra na sala, abre o armário de bebidas e me oferece o que eu quiser. É a mãe da outra, me olhando como quem diz, “É isso aí mesmo, beba e esqueça”. E eu bebi. Sentado no couro frio do divã, esperando. 

Se eu botei significado nas coisas? Um pouco. Eu não tinha pensado se ele estava me trocando, não era um medo que eu tinha — bom, não até agora. Muito menos por uma mulher. Ela deve ser metafórica. Mas significando o quê? Por que tão nova? A diferença de idade entre Cesar e eu era significativa, mais de uma década, mas não tinha sido um problema — ou será que tinha e eu não reparara? As pequenas marcas que começavam a aparecer no meu rosto já eram profundas nele. O branco invadia sua barba, enquanto a minha era território inexplorado pela cor-tempo. 

Inocentemente acreditando ser um caso isolado, dormi. Neste segundo dia, foi um sonho mais tranquilo, ou assim pareceu no início. Em cima de uma laje de uma casa verde-pistache descascada, acontecia uma peça de teatro. O público sentava a metros de distância, mas eu não era público. Também não era palco. Eu era limbo, entre os dois. Cinco figuras mascaradas cobertas por lençóis brancos se agitavam, Cesar era uma delas, e eu fotografava sem parar, andava para frente e para trás, inventava ângulos. Quando a peça termina (e Cesar nem é ator na vida real), ele tira a máscara e me abraça pela cintura, cola o rosto no meu, “Você achou mesmo que eu ia te trocar, seu bobo?”, me olha e sorri. Um sorriso que eu nunca vi antes. Ele não sorri desse jeito. Só tinha visto… No sonho anterior. 

O que era pra ser um sonho tranquilo me tirou o chão. Achei que ficaria feliz por ouvir ele falando aquilo, mas quanto mais pensava, pior ficava. Aquele sorriso esquisito, de quem comanda a situação, de quem é bom demais e sabe disso, nunca vi em seu rosto. Mas alguma coisa em mim queria que eu o visse desse jeito. O abraço que deveria ter sido caloroso era gélido. Sobre máscaras, não preciso nem falar. 

Nos conhecemos há uns sete meses. Desde então, conversávamos direto, das manhãs preguiçosas às noites de insônia. Nossa primeira vez nem foi estranha, porque era como se fôssemos íntimos há anos. A palavra pavimentou o caminho do beijo. Em pouco tempo, estávamos em sintonia. Mesmo quando não podíamos nos encontrar, algumas mensagens já surtiam efeito. E quando nos víamos… olho no olho e entrelaço de mãos, uma música, uma meia-luz, pernas enroscadas, sorrisos e carinhos, dois se fazendo em um. 

E nesse tempo muita coisa aconteceu. Ele perdeu o emprego como professor, eu tive que me mudar, tudo dificultando nossos encontros. Mas quando esses raros momentos aconteciam, compensavam tudo. Eu mandava “Saudades” e ele respondia “Vamos nos ver!”. Parecia que aquilo caminhava para algo mais sério. A intimidade se constrói, e a nossa parecia crescer sobre os pequenos – e médios e grandes – problemas. É difícil saber como agir quando acontece algo sério com alguém que você ainda não conhece tão bem quanto pensava, mas não quer se afastar. Passos lentos, é meu lema. E parecia funcionar. 

Depois, eu mandava “Saudades” e ele “Estou bem ocupado, vamos ver”. Um “Queria estar contigo” era respondido com um “Hehe”. Sou pisciano distraído, mas nem tanto. Se tem uma coisa que eu odeio é quando alguém não sabe conversar. Se, o que quer que fosse aquilo que a gente tinha, não estava dando certo, era preciso falar. Ser frio e desaparecer é muita canalhice, e eu não esperava isso do Cesar. Não seria a primeira nem a segunda vez que eu passava por isso, mas não com ele. Nem que eu tivesse que forçá-lo a ter uma atitude decente. 

Acabei deixando isso pra depois. Típico. Meu foco ontem era conseguir dormir. Parecia que eu estava sentindo o que ia acontecer. Minhas pálpebras me impediam de cair no precipício do mundo dos sonhos onde desde o início da queda eu já via o rosto de Cesar emergindo das rochas pontiagudas, como braços que me perfurariam antes de me segurar. Mas nenhuma pálpebra é tão forte. 

Ele dava um curso meio motivacional meio metafísico e, num grupo de estranhos, lá estava eu (como se eu fosse fazer curso motivacional de alguma coisa!). Durante um intervalo, todos saem da sala empolgados com o conteúdo e eu volto, empolgado por vê-lo. Quando chego perto, Cesar se transforma em um gigantesco computador de tela laranjada, onde aparecia um grande catálogo de livros filosóficos, sobre superioridade humana, sobre iluminação, transhumanismo e sei lá mais o que. Volta a ser humano e me olha nos olhos, pula da minha boca um muxoxo que parecia um sapo perneta. “Olhos?”, ecoou a voz da MáquinaCesar, “eu não preciso de olhos, você precisa de olhos, o que acha que vai ver nos meus olhos? Vai querer ler meus sentimentos mais uma vez e mais uma vez vai estar errado”. O sapo perneta deslizava na minha garganta com seu coaxado fraco, “Eu posso ser igual a você, me deixa mudar por você”. “Você não vai conseguir”, o ruído metálico respondia quando o despertador tocou e eu acordei, um dos muxoxos passando daquele mundo pra esse enquanto eu abria os olhos. 

Já entendi, inconsciente, já entendi. Assim que eu saísse da cama, ligaria pra minha terapeuta, mais uma sessão para falar do meu sentimento de inferioridade ou sobre minhas inseguranças ou ainda como eu usava microsignificados e superanalisava tudo ao invés de tentar resolver as coisas de uma vez. Antes, eu precisava encerrar aquilo que já estava encerrado, mas não queria encarar. Botei os pés no chão e mandei para Cesar uma mensagem: “Precisamos conversar”. 


Brunow Camman é escritor, ator e jornalista curitibano. Do cinema à literatura, passando pelo teatro e artes visuais, busca unir referências de diferentes áreas em suas criações. Tem contos publicados em coletâneas desde 2003. Foi o vencedor da segunda edição do Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura com o romance “O Último Dia do Amor”. @brunowcamman 


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