Há poucos dias, ouvi de um conhecido meu uma curiosa definição de psicanálise. Ele a definia como “a arqueologia da alma”. Não sou grande conhecedor da área; porém, não lhe tiro a razão. Afinal de contas, nossas histórias de vida, memórias, traumas, afetos, frustrações, etc, sobrepõem-se em camadas. Camadas mais ou menos sedimentadas, mais ou menos solidificadas ou mexidas, mas… camadas. Até aí, tudo bem. Mas a questão se complexifica quando nos perguntamos sobre o que lembramos e o que esquecemos, o que rememoramos e o que silenciamos, e de que forma contamos e recontamos determinadas estórias que permeiam nossas vidas ao longo do tempo.
Um dos motivos pelos quais conservo o hábito de reler meus textos pretéritos é analisar os diferentes momentos em que refleti sobre a vida, tentando dar conta de algumas mudanças e permanências presentes na forma de pensar e conceber meu lugar no mundo – nesse “mundo vasto mundo”, para não deixar de citar aqui o sempre atual poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Nesse fim de ano de 2022, às voltas com a escolha de um texto para publicar na revista Trama, resolvi revirar meu baú digital… Eis que encontro um que escrevi em 1 de janeiro de 2018, e decido publicá-lo. E mais: publicá-lo sem nenhuma alteração, mesmo tentado a retocar um parágrafo aqui, outro ali.
Esforcei-me para subverter essa espécie de “teoria das edições humanas” que persegue nossas memórias, segundo a qual nosso passado é constantemente devassado e relido de diferentes maneiras, por nós e pelos outros, em diferentes momentos da história. Refiro-me, aqui, ao clássico livro de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que o “defunto-autor” – e não “autor-defunto” – afirma que “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. Saibam que, dessa vez, recusei-me a reeditar meu passado. Nem quero dar esse gosto à posteridade. Por isso, publico, agora, na íntegra, sem toques e retoques, o “mesmíssimo” texto escrito, por minhas próprias mãos, quase cinco anos atrás. Seria correto afirmar que evoco, aqui, um resquício inalterável e imutável de meu passado? O que “mudei” ou “permaneci”, isso não vem ao caso agora, leitor! Deixo essa incógnita para os que me leem e me conhecem tentarem desvendar… Aos que me apontarem erros, já digo que mudei. Aos que me acharem brilhante, direi que continuo o mesmo.
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“Certa vez, voltava pra casa numa sexta-feira de dezembro. O ano era 2004. Acabava de encerrar o terceiro ano do Ensino Médio, uma etapa importante de minha vida. Não imaginava que muitas outras etapas ainda viriam pela frente, aguardando coragem e determinação para serem enfrentadas. Estava dentro do ônibus, a caminho de casa, contemplando os lindos enfeites de Natal colocados nas fachadas das casas e prédios da rua D. Silvério. Sentia-me contagiado pelo espírito natalino. Como de costume, essa data sempre me despertou os melhores sentimentos de esperança e uma desmedida alegria de ver toda família reunida. Eis que, de repente, um senhor sentado ao meu lado, de aparência sisuda, começou a tecer comentários sobre as festas de fim de ano. De sua boca saíam palavras de nostalgia, misturadas com desabafo e amargura. Com seu jeito casmurro, que logo me remeteu ao clássico personagem do romance machadiano que lera há pouco na escola, ele me falava sobre seu desencantamento com o Natal e as festas de fim de ano. Dizia que se lembrava com saudade dos tempos em que toda família se reunia para festejar, mas que, naquele momento, seu coração estava tomado pelo tenebroso e destrutivo sentimento de solidão, falta de esperança e tristeza com as injustiças mundanas.
Fiquei inerte diante de sua fala. Não consegui esboçar nenhuma palavra sequer de ajuda e consolo. Só pude oferecer o silêncio e um ouvido atento a um ser que não hesitava em desabafar suas angústias e dilemas existenciais a um jovem desconhecido e pouco conhecedor das dificuldades da vida, cujos pensamentos, naquele momento, só se deslumbravam com o esplendor e encanto das festas natalinas. Não obstante a suposta banalidade do fato, talvez tivesse vivido naquele instante uma das primeiras experiências mais significativas de empatia e de real compreensão do significado do verbo “entender”, que consiste basicamente em entrar na tenda do outro, ou seja, colocar-se no seu lugar para ter uma melhor dimensão do problema que o aflige. Por um instante, o silêncio me tirou da zona de conforto e me despertou para uma reflexão que se eternizou em minha memória.
Essa lembrança me foi acionada novamente um dia desses, enquanto lia uma carta de Carlos Drummond para um amigo pintor. Nessa carta, o poeta mineiro dividia com ele a angústia das festas de fim ano. Para ambos, a data e toda euforia trazida por ela, fazia emergir nas pessoas a obrigatória manifestação de uma felicidade com data de validade, um sentimento de felicidade frívola e superficial. Uma reflexão muito coerente com o poema “Receita de Ano Novo”, que o mesmo poeta publicou tempos depois, em que o eu-lírico nos alerta para um “novo” construído por nós, dizendo que, para termos um ano novo realmente novo, teríamos que merecê-lo, fazê-lo novo.
Em sua infância austera e sisuda de pequeno adulto, D. Pedro II repetia em diversas línguas uma máxima aristotélica em seus exercícios de caligrafia, que dizia: “a felicidade é um hábito”. Uma frase pequena, mas profunda no significado, que nos faz pensar na felicidade como um processo de construção vinculado ao que há de profundo e genuíno na vida. Hoje, com as redes sociais, potencializamos a ideia de que a felicidade é uma obrigação ou um evento e, com isso, a vestimos com a roupa de uma superficialidade míope, praticamente cega e descomprometida com a felicidade do outro. A construção da felicidade é, para nós, sinônimo de invenção, de ficção, e não de processo. Transformamos a felicidade num sentimento hedonista, de busca incessante pelo prazer a qualquer custo, tornando nossas almas extremamente frágeis e vulneráveis às dificuldades, às frustrações da vida e, mais do que isso, insensíveis à dor do outro, incapazes, portanto, de entender o outro (entrar na tenda do outro) e de abdicar de alguns interesses e prazeres individuais por causa de alguém. Em muitas letras de música da cultura de massas, hoje, não se canta mais o sofrimento e qualquer tipo de reflexão que não seja o espetáculo da falsa “sofrência”. Mas, como diz a música de Lulu Santos, “assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade”. Assim caminha a humanidade, sem vontade de se sensibilizar e sentir a dor do outro, sem vontade de cultivar a nobreza das coisas que reedificam em nós novas condições para a nossa existência.
O imediatismo do mundo contemporâneo nos induz a um grande equívoco: antes mesmo de fazermos um diagnóstico da vida no ano de 2017, já partimos para um “novo” projeto de vida para 2018, como se fosse possível planejar o futuro ignorando o passado e o presente. Nem sequer percebemos que, num desejo de algo aparentemente novo, existem ranços de vícios antigos que talvez devessem ser superados. Será que nosso conceito de novo não nos serve apenas pra camuflar os problemas mal resolvidos que se arrastam há tempos ao longo de nossas vidas, tornando-se um fardo cada dia mais pesado, cujo enfrentamento tentamos ignorar a cada início de ano? Será que não é por conta disso que as famosas promessas para o ano vindouro muitas vezes não passam de listas fictícias, completamente descartáveis e de improvável realização?
Estamos condenados ao fim do mundo? Creio que não. Desde que cada um de nós cultive a verdadeira vontade de um ano verdadeiramente novo, diferente do conto de fadas das ‘selfies’, com menos superficialidades e mais profundidade nos sentimentos, nas relações interpessoais e nas escolhas que fazemos. Para isso, precisamos reduzir os individualismos e começar a ensinar para as crianças um mundo que extrapole o conto de fadas e a redoma de vidro do seio familiar, que muitas vezes, com as melhores das intenções, acaba por praticar uma educação pouco ou nada útil à construção de uma vida em sociedade, de uma vida comunitária, sensível ao compartilhamento de valores éticos e de cidadania, como o respeito, a defesa e a luta pelos direitos humanos, trabalhistas, etc. Será que estamos educando para um vida de empatia? Ou será que estamos nos contentando apenas com a falsa simpatia de um discurso politicamente correto? Ou será que estamos reproduzindo continuamente a ideia de que a felicidade é uma ‘selfie’ do próprio umbigo, e que o resto do mundo se exploda?
Voltando ao meu lugar na poltrona do ônibus coletivo em que percorria as ruas de Juiz de Fora em 2004, faço a seguinte pergunta: a quem pode interessar, hoje, a angústia daquele homem que me dirigiu a palavra? Será que, na sua lista para 2018, há espaço para o outro? Será que estamos conscientes de que a felicidade ou a infelicidade do outro nos interpela direta ou indiretamente, interferindo nos planos que fazemos, na concretização dos sonhos que sonhamos? Ou será que um sonho partilhado vale menos que um sonho solitário?
Sendo assim, o meu desejo é que 2018 seja um ano de sentimentos que oportunizem, em nós e nos outros, mudanças reais. Refiro-me, obviamente, ao amor, à tolerância e à esperança. Que tenhamos muita esperança na luta (pois precisamos), com boas doses de discernimento e de crescimento, para que nos tornemos continuamente seres humanos melhores, mais dignos e menos amesquinhados pelas dificuldades da vida. Grande abraço a todas e todos e fiquem com Deus!”
Sérgio Augusto Vicente, o de 2018 ou o de 2022?
Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG. Dedica-se a pesquisas relativas ao campo da história social da cultura/literatura, sociabilidades, trajetórias, memórias e acervos arquivístico e bibliográfico do Museu Mariano Procópio. Escritor colaborador e membro do Conselho Editorial da revista Trama Bodoque: Arte, Cultura e Criatividade.
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Relendo este lindo texto. Parabéns!