A hóspede louca

Ela chegou sem ser convidada, mas é nosso costume recepcionar quem entra em nossa casa. Nós nos sentamos à mesa e pedimos a sequência de entrada, prato principal e sobremesa. Brindamos e usamos os talheres conforme o enredo dos pratos. Ela se levanta da mesa e se distrai comendo flores no jardim. Nós verificamos o movimento dos ponteiros e o compasso dos segundos, delimitando o encaixe de nossos compromissos. Ela se aferra à nossa organização, na intransigência que falhamos em cumprir, ou então se guia pelo lusco-fusco das indefinições do chiaroscuro, nas lacunas que deixamos passar e nossas regras não previam. Nós nos ancoramos sobre as titulações do cargo, da patente e do mestrado em busca de um constante certificado de nossas identidades. Ela se fantasia com as condecorações nos seus trajes, alheia ao nosso cerimonial. Nós nos refugiamos em terços, patuás e promessas diante das calamidades, das guerras e das doenças. Ela é oráculo das profecias e montaria dos deuses. Nós erguemos pontes para atravessar sem interromper o passo, ela estaciona e faz da ponte plataforma de um discurso sem ouvintes ou do salto sem volta.  

Contudo, como está entre nós, tentamos servi-la para que ela possa um dia bem nos servir. Nós estabelecemos o conveniente e o esperado, ela dinamita nossas expectativas. Sabemos quando e onde tomá-la pela mão e cadenciar o passo quando a permitimos estar em nossas festas, em nossos ritos e em nossos jogos. Ela desconhece a ocasião de dançar. Rodopia nossas certezas, escarnece de nossa previsibilidade, flexiona as normas e revisa nosso prognóstico. A vida nos oferece um oceano a atravessar, por onde navegamos em um encouraçado feito de

dobradura de papel de nossas crenças, confiantes de que nos levará ao destino certo. Ela bóia sobre as águas encarando as estrelas, desenhando novas constelações que apontam a outros rumos.  

Nós sabemos o que deve ser ensinado e aprendido nas salas de aula e a convidamos para se juntar a nós. Ela quebra as janelas ou apaga as luzes. Nós a amaldiçoamos por nos cegar, seja na escuridão indistinta ou na resplandecência ofuscante. Nós mostramos o algoritmo, o procedimento operacional padrão, ela desconhece os princípios básicos. Nós colidimos contra o muro dos limites, ela é a visionária que enxerga para além da muralha. Ela é o espelho que nos envergonha.  

Nós estabelecemos o método, a filosofia e o estilo. Ela contamina todo o nosso sistema com a imaginação, refutando tradições, revisando teorias, inaugurando revoluções. Nós nos escandalizamos com sua espontaneidade, ela padece na nossa convenção. Nós a vislumbramos durante os sonhos, ela desperta o absurdo durante a vigília. Nós tentamos contornar sua face, ela sempre escapa de nossas linhas. Nós queremos assimilar, ela transborda nossa percepção. Nós repetimos os mestres, mas é ela quem os inspira. Nós, quando em alto e bom som rimos, amamos ou odiamos, entregamo-nos às vezes ao seu comando, mas sempre esquecemos de que era ela quem estava nos sussurrando. Nós a ridicularizamos em suas correntes, na sua ignorância lastimável. Ela nos humilha em nossa incapacidade de entendê-la. Nós a mencionamos quando nada mais é possível de ser diagnosticado, quando esgotamos toda nossa ciência. Ela é o espanto que nos apavora, ela é o êxtase que nos atrai.  

Nós somos os adultos, ela é a criança que renasce em todas as idades. Nós a encarceramos, ela nos dilacera. Nós fazemos as leis, ela delimita seu alcance.

Nós dissimulamos o medo, ela amedronta sem querer. Nós a expulsamos, ela se esconde em nossa casa. Ela é o estrangeiro que habita em nós. 


André Mellagi (1973) é paulistano, psicólogo e escritor. Possui doutorado em Psicologia Social e publicou pela editora Patuá os livros de contos “Bricabraque” e “Interfaces”, além do e-book de minicontos “Prosas Breves, Mínimas e Semifusas”. Já colaborou com textos e fotos a diversas revistas literárias eletrônicas ou impressas. 

 


Clique na imagem para mais informações!

Esse espaço maroto de apoio e fomento à cultura pode mostrar também a sua marca!

Agora você pode divulgar seus produtos, marca e eventos na Trama em todas as publicações!

No plano de parceira Tramando, você escolhe entre 01 e 04 edições para ficar em destaque na nossa plataforma, ou seja, todas as publicações contidas nas edições selecionadas vão trazer a sua marca em destaque nesse espaço aqui, logo após cada texto e exposição . Os valores variam de R$40,00 a R$100,00.

Para comprar o seu espaço aqui na Trama é só entrar em contato através do whatsapp: (32) 98452-3839, ou via direct na nossa página do Instagram.

Clique na imagem para mais informações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *