Eu sou uma idiota, Prazer. Tanto que assim como Brás Cubas não sabia se era um defunto autor ou um autor defunto, eu não sei se sou uma idiota ou se há uma idiota que habita meu ser.
É sempre assim, o ciclo da loucura. Sonho, me preparo, arrisco e falho, depois disso vem a tortura. O que eu faço? E essa ferida, como que cura? Por quê nada dá certo? Por quê nada nunca muda?
O negócio é que a gente criou uma espécie equação, não sei se criamos ou se nos foi criado, mas enfim, tá lá uma linha com uma incógnita brilhando no nosso quadro mental, e se sabemos um pouco de matemática, sabemos também que todo x precisa de um equivalente, que muitas vezes é igual a outra equação ou um ilusório zero. Nessa nossa equação ordenamos a nossa vontade, o nosso esforço, o nosso sonho com brecha às vezes para o quanto precisamos, o tempo que dedicamos ao x, apelamos até pra nossa fé apostando num ato de divindade. Fazemos nossas contas nos esmeramos ao máximo, somando, dividindo, subtraindo e multiplicando, carregamos essa incógnita, jogamos o valor para os dois lados, a equivalência nos faz pensar em arriscar, executar a rota, só que acontece de simplesmente o valor não dar, o nosso x calculado se debate ao ver um zero real de frente. E aí? A dúvida é se dá para lutar mais um pouco ou se deixa zerar.
Nos acostumamos com a ideia de “se fizer tudo certo” vai haver bom resultado, considerando que a vida é receita de bolo, mas na verdade é cama de gato.
Essa brincadeira infantil que só precisa de um barbante, simples e complicada, como uma teia de aranha que quanto mais se debate mais se afunda. É difícil resolver a cama de gato, não é qualquer um que sabe, não é qualquer configuração que vale, não é qualquer um o resultado, são necessários movimentos cirúrgicos, confusos mas exatos para mudar aquela configuração e transformar a embolação em outro algo complicado. Mudar a cama de gato nem sempre é de primeira, a gente observa as pessoas que sabem , chegaram onde a gente gostaria e quer, tem certeza que aprendeu o movimento mas na sorte de principiante nem sempre a regra é clara, no embolar dos barbantes a gente se queixa, os nós precisam ser desatados quando somente o que sobra é um fio emaranhado na mão.
Rubem Alves escreveu um livro que se chama “A menina e o pássaro encantado”, uma história para crianças e sobre separação, como diz o próprio autor, e caso não seja para crianças em idade propriamente ditas, são para as crianças que guardamos dentro de nós, que sofrem quando precisamos dizer adeus aos que amamos. O livro conta a história de uma menina que tinha um pássaro incomum, ele era encantado e além disso, vivia solto. Ao contrário dos pássaros que voavam ao se verem livres da gaiola, aquele pássaro voltava quando sentia saudades. Por ser encantado, cada vez que ele voava, voltava diferente, trazia em si as características e as histórias dos lugares onde passava. Se passasse por lugares frios, voltava branco da neve que encontrava, se passasse pelo calor voltava vermelho do fogo que via, e sempre ao chegar encantava aquela criança com as histórias de todos os lugares que passara. Um dia a menina cansada de sempre morrer de saudades , criou a ideia de aprisioná-lo numa gaiola, esperando o dia que o pássaro chegaria. Quando aquele pássaro lindo veio, depois de contar todas as histórias dos lugares que passou, adormeceu, e nesse momento importuno aquela menina o aprisionou. Ao acordar e se ver sem saída, o pássaro triste contou que seu encanto acabaria. A beleza dele dependia da liberdade, a gaiola faria com que as suas penas ficassem feias e ele não se lembraria mais das suas histórias. A menina não acreditou, era impossível o encanto se quebrar por causa de uma simples gaiola, mas o passar do tempo mostrou que aquela justificativa era verdadeira, as penas do pássaro antes tão vivas e coloridas foram se tornando cinzentas, como se não houvesse nenhum sinal de vida. A menina não aguentava ver aquele animal tão amado numa situação tão debilitada assim, e o libertou, enquanto agradecia o pássaro explicava que o encanto da liberdade estava na saudade, ele precisava querer voltar, e cada vez que isso acontecia um com o outro, coisas boas cresciam dentro deles, a beleza renasceria pela esperança de um reencontro.
Eu adoro ler esse livro. Não para relembrar das pessoas que foram e eu tenho saudade, mas confesso que é bom me olhar naquela menina que deixou o que amava ir, respiro e encho o peito por me sentir tão altruísta, em seguida saio distribuindo o papel de pássaro encantado aos que saem do meu lado, e caso haja os que não voltem, serão nomeados ingratos e por mais relevantes os julgarei irrelevantes. Do mesmo lado, eu penso que esse livro é quase um passo a passo sobre o ciclo de sentir idiota. É pegar o barbante embolado e esquecido e num esforço aprender como desembolar e fazer aquelas configurações manuais tudo de novo. Olhar aquele pássaro tão colorido ficando acinzentado com certeza fez todas as operações imagináveis daquela menininha igualarem o x ao real zero, afinal, o que havia de errado na saudade? O que havia de errado em amar? Em querer o que ela amava tanto sempre perto dela? É difícil entender como nem sempre o que não está errado é o sinal de que tudo vai dar certo. É difícil também nos permitir ter o direito de errar, precisamos ser infalíveis, inabaláveis, campeões em tudo ao contrário do que sabemos dos outros, como dizia Álvaro de Campos. A solução pode até ser só uma, mas a forma não. Podemos nos desesperar, enlouquecer , e sinceramente, as vezes a gente até precisa, mas quando o balde já está chutado e a gente está escorregando na água que derramou, quantas vezes a saída é justamente recomeçar? Quantas vezes o sonho e a vontade é maior e a gente sente que a alta costura nunca foi tão exata quanto ao acertar na roupa de idiota que nos cabe?
Todos nós merecemos tentar, o alvo que a gente mirou errado mostra pra gente a exata direção. Se a menininha não tivesse aprisionado o pássaro, iria marinar a dívida e a dúvida da saudade, sem aprender da liberdade. Sentir-se idiota faz parte de acertar, a diferença vem que depois dessa hora a gente talvez vai saber como fazer, coisas que a gente não vai errar, besteiras que a gente não vai falar, a frustração que a gente não vai descontar, e a esperança que dessa vez vai. Te garanto que eu não prometo que nem sempre vai, mas te juro que às vezes a paz é um bom pagamento para o que não foi alcançado. Isso não ocupa o lugar do que queremos, mas é a sensação de o quanto era de nossa responsabilidade, a oportunidade e vontade estava tudo certo.
Bárbara Oliveira é calma, resultado da soma do acaso de tão acostumada com o adverso, como diz o samba. Fã de um bom pagode e conhecedora de referências em italiano pra várias sessões de O Poderoso Chefão, Bárbara contempla a vida com um olhar peculiar de quem consegue desnudar camada por camada de cada texto ou pessoa.
Antes uma leitora e fã dessa revista, graduada em Letras pela UFJF, depois de anos trabalhando em sala de aula, hoje, completa o time de autores e a equipe editorial da mesma com a maestria de um neurocirurgião, com os seus conhecimentos poéticos desbrava as vidas nessa cidade e conforta os amigos com sabedorias dos imortais da literatura.
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