Mil Placebos

Mil Placebos”, do escritor gaúcho Matheus Borges, abre uma discussão sobre tecnologia, violência, depressão e solitude;

Trecho 1 

Eu tinha dezessete anos e há dois era membro do fórum Bit Talk. Minha atividade se dava ao longo de muitas horas diárias sob o pseudônimo Eyeball Kid. Chegava da escola ao meio-dia, tirava o computador do modo de espera e ligava o monitor. Em poucos segundos, saudado pela tela de boas-vindas, digitava nome de usuário e senha. A barra de carregamento se enchia de azul e um universo se abria para mim, dividido em áreas de interesse, tópicos e subfóruns. Dali eu seguia durante a tarde até de madrugada, acompanhando discussões a respeito dos mais variados assuntos. Criptografia em diferentes linguagens, compressão de arquivos de vídeo e som, processamento de dados, músicos obscuros fadados ao fracasso, filmes perdidos. Alguns dos interlocutores:  

Dot King, técnico em informática e proprietário de um pequeno comércio de computadores no estado de Washington. Era o moderador do subfórum de hardware e acessórios, um homem atencioso que não ignorava nenhuma das inúmeras mensagens que recebia todos os dias.  

G Schmid, especialista em assuntos relacionados a áudio. Vivia na Holanda e seu tópico preferido eram microfones e equipamentos de gravação. Costumava gravar os sons de florestas e lugares remotos. Processava-os, remixava-os e os disponibilizava em arquivos mp3, disseminados pela comunidade sob o título Schmid Nature Tapes. 

Scarface Ron, editor de filmes e videoclipes que já tinha trabalhado em algumas grandes produções de Hollywood. Seu trabalho mais conhecido, fazia questão de ressaltar, foi A Rocha, o filme de 1996 estrelado por Sean Connery e Nicolas Cage, em que atuou no departamento de pós-produção. 

Além desses inúmeros profissionais, o Bit Talk também abrigava grupos de jovens entusiastas. Pessoas como eu, adolescentes curiosos querendo saber mais sobre a maior quantidade de assuntos possíveis. Todos os dias, trocávamos textos, links, notícias. Tópicos não necessariamente relacionados a informática. Ficção científica, teoria das cordas, ufologia, criptozoologia, mitologia antiga. A terra oca e a terra plana. Todos os tipos de pseudociências desacreditadas, mitos contemporâneos e folclores pós-modernos. Gostávamos de compreender antigas divindades germânicas e também a mecânica envolvida nos telescópios de longo alcance. Admirávamos os avanços da ciência moderna, bem como os renegados que tentavam refutá-la, evocando sempre um espírito de aventura. Passávamos noites tentando compreender a origem e o propósito de obscuros trechos em vídeo que surgiam de uma hora para a outra, cativando nosso senso de mistério. Imagens de câmeras de vigilância, fotografias em baixa resolução. Rostos sombrios em danças estranhas, códigos que talvez remetessem a inacessíveis tramas elaboradas em segredo – por criminosos, governantes ou entidades sobrenaturais. 

Eu era um dos pouquíssimos brasileiros no fórum. Lembro de apenas outros dois, com quem nunca mantive contato. Seria lógico que procurássemos uns aos outros devido à proximidade geográfica e o que ocorria, na verdade, era exatamente o contrário. Não cruzávamos caminhos e evitávamos qualquer tipo de aproximação. Não havia, porém, nenhum grau de intencionalidade nesse distanciamento. Reagíamos a forças naturais, como polos de cargas opostas. Cátodos e ânodos em constante atrito e submetidos à força de repulsão. 

Trecho 2

Minha mãe, ao perceber que eu a observava, virou-se para mim, tentando não manifestar o que sentia, mas eu era capaz de perceber. Estava assustada, comovida, surpresa. Ao mesmo tempo, desejava que eu me sentisse seguro, do mesmo jeito que almejava solidez em meio às recentes tempestades que acometiam nossa família. Ela pegou minha mão e me disse: 

“Isso que você tem, isso que você está sentindo. Não tem nada de errado com isso. É algo difícil de lidar e talvez você até se sinta diferente dos outros. Diferente, sim. Mas não errado”. 

Acenei positivamente com a cabeça, os olhos fitando a seta inerte do velocímetro. A descoberta de minha personalidade esquizoide, minha inclusão num grupo social, definido por critérios médicos, foi um dos raros momentos de epifania e autodescoberta que já vivenciei. A partir daí, artigos sobre o transtorno se tornaram parte de minha rotina, leituras canônicas para preencher a monotonia das horas. Imaginei querer compreender a ordem regente dos acontecimentos de minha vida e encontrar respostas para os meus problemas. Na verdade, eu buscava desvelar as motivações ocultas do meu comportamento. E ele se mostrara bem mais complexo do que eu era capaz de supor. Mesmo hoje, mesmo sabendo tudo o que sei a meu respeito, ainda sinto uma profunda desconfiança de mim mesmo. Então é preciso retornar a determinado artigo para me certificar de que sou capaz de entender o que faço e penso.  

“O indivíduo esquizoide está desligado da realidade exterior a tal nível que ele ou ela sente que a mesma é perigosa. É uma resposta humana natural fugir de fontes de perigo e se voltar àquelas mais seguras. O esquizoide, portanto, está preocupado primeiramente em evitar o perigo e em garantir segurança”. 

Meu pai, enquanto isso, procurava um novo emprego. Exausto, percorria inúmeros corredores apenas para constatar que já estava fora da faixa etária aceitável para contratação. Estávamos os dois um pior que o outro, forçados a aceitar eventos tão difíceis de engolir num período de tempo tão curto. A morte de alguém da mesma idade é algo extremamente confuso a um adolescente de dezessete anos. Pedir emprego a executivos vinte anos mais jovens é uma tarefa humilhante a um homem de cinquenta. 

Minha lembrança do verão daquele ano é sobretudo química: um de nós tomava venlafaxina e o outro, citalopram. Éramos dois zumbis, sonolentos ou insones, sobretudo aéreos. O ambiente não era, portanto, o mais agradável. 

Trecho 3 

Um dia, ao acordar, dei com as malas fechadas de Iggy, empilhadas num canto da sala, as mesmas malas que haviam permanecido abertas durante os últimos meses. Iggy surgiu, vindo da cozinha. Disse-me com satisfação que o tempo de aproveitamento máximo de sua bolsa havia chegado ao fim e que era hora de encontrar novos rumos, enfrentar novos desafios. Partiria em alguns dias rumo a Paris, onde o pai se encontrava para ministrar um congresso de medicina.  

Fiquei surpreso, mas não abatido. Minha experiência acadêmica não estava me satisfazendo de forma alguma. Meus colegas não demonstravam o menor entusiasmo e os professores conduziam aquelas patéticas reuniões com o máximo de descaso possível, contando os minutos que passavam devagar, como se cumprissem penas numa penitenciária de segurança máxima, ignorando que poucos alunos eram capazes de verdadeiramente absorver o conhecimento apresentado daquela maneira. Via de regra, todos eram aprovados. E o alto índice de aprovação alimentava o mito de que aquela era uma das melhores universidades privadas do Brasil. 

Tudo isso fazia com que as aulas fossem uma experiência terrível. Naqueles momentos, eu percebia que o tempo, experimentado de maneira objetiva e linear, já não servia para mim. Percebi que o tempo real era devagar demais. A maneira como tinha aprendido a extrair as informações, desde o começo da adolescência, era muito diferente do tempo real.  

Enquanto o método de ensino dos professores universitários propunha explorar um assunto durante duas horas com discursos longos e pouco espaço para variações, meu método de colheita de informações ia e voltava a diferentes tópicos em um espaço de tempo menor. O fato desses tópicos se relacionarem entre si me possibilitava estabelecer uma linha própria de raciocínio, fazendo com que eu chegasse mais rápido às minhas próprias conclusões, tornando o processo mais eficiente, com menor desperdício de energia. Duas horas de exploração vagarosa apenas jogava um objeto no vácuo, deixando-o livre para flutuar para cada vez mais longe. Eu, ao contrário, gostava de ter o objeto próximo de mim, entre meus dedos, sob um microscópio, observando-o sob todos os ângulos possíveis. 

Quando chegou o dia da partida de Iggy, ajudei-o a carregar as malas até o táxi. Era seis horas de uma manhã cinzenta com nuvens pesadas, em que lufadas de vento assoviavam ao nosso redor. Mesmo depois de uma grande xícara de café, Iggy lutava para resistir ao sono. Eu ainda vestia minhas roupas de dormir, mesmo que não tivesse dormido um segundo sequer na madrugada anterior. Encaixamos a bagagem no porta-malas do veículo e nos despedimos ali mesmo com um aperto de mãos. Nossa despedida foi pragmática, da mesma maneira como havia sido nossa convivência ao longo dos meses anteriores. Desejamos um ao outro que o futuro nos trouxesse bons resultados. Em outras palavras, eram votos recíprocos de felicidade.  

Iggy sorria, confiante de que um dia nos encontraríamos novamente. Pensei em me oferecer para acompanhá-lo até o aeroporto mas, antes que pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, Iggy já havia colocado seus headphones e o táxi deu partida, avançando devagar nas ruas semidesertas em que se ensaiavam os movimentos de mais um dia de trabalho. Parado na calçada, observei o automóvel se afastar e novamente me senti sozinho, mais sozinho que em qualquer outro momento da vida, mais sozinho que na noite em que dormi pela primeira vez no apartamento compartilhado. Eu agora poderia encontrar um novo colega ou ter o imóvel inteiro para mim mesmo, incluindo o quarto vazio de Iggy. Nenhuma das duas opções me parecia muito agradável. 

Considerando a partida de Iggy e, principalmente, minha insatisfação com o ambiente acadêmico, preferi abandonar a universidade, não sentindo qualquer tipo de remorso. A decisão não significou nada para mim, pois já fazia algum tempo que eu vinha acumulando mais faltas do que boas notas, do que notas ruins, do que qualquer tipo de nota. Abandonar as aulas de vez exigiu apenas que eu transformasse esse padrão pontilhado em linha reta. Quando comuniquei minha decisão, meus pais ficaram muito preocupados com meu estado psicológico.  

De hora em hora, eu recebia mensagens de minha mãe em seu habitual tom diplomático, não aprovando nem reprovando minha saída do meio acadêmico – o mesmo tom que costumava usar quando acreditava que eu estava prestes a enlouquecer. Uma noite, meu pai apareceu sem avisar e, sentado no sofá da sala, disse-me com palavras brandas que abandonar a vida acadêmica não me faria bem. Sem uma graduação, eu não encontraria espaço no mercado de trabalho, que já era competitivo o bastante para profissionais instruídos.  

Expliquei a ele meus motivos. Ainda que não tenha entrado em detalhes, fui bastante enfático. Disse a ele que a experiência não vinha sendo satisfatória, que nada daquilo tinha serventia alguma para mim. Eu ainda não tinha muita noção do que queria para o futuro, mas estava certo do que não queria. Sua resposta, após uma longa pausa, foi a de que eu deveria conversar com meu psiquiatra, trocar meu remédio, talvez eu pudesse estar atravessando naquele momento “uma crise de depressão”. A depressão, segundo a compreensão do meu pai, muitas vezes se manifestava de maneiras sorrateiras e não tão pronunciadas quanto àquele verão em que nós dois tínhamos sofrido juntos. Existiam também alternativas, segundo ele. Havia um grande número de médicos e pesquisadores desenvolvendo novos medicamentos a partir de substâncias naturais. 

Já fazia algum tempo que eu não visitava o consultório do psiquiatra. Havia estado lá duas ou três vezes e a companhia daquele homem me provocava um tédio imenso, bem como seus conselhos e conclusões, dirigidas ao ideal platônico de paciente, nunca a mim ou a qualquer indivíduo em particular. As consultas eram tão infrutíferas quanto as aulas e todas compartilhavam desse mesmo aspecto terrível de impessoalidade autoritária, exigindo que eu apresentasse bons resultados, a fim de validar as teses aplicadas em mim, o paciente e aluno.  

Não contei nada disso ao meu pai. Disse a ele que, apesar de todas as dúvidas que eu alimentava em relação ao futuro, apesar da incerteza e do fantasma da depressão, apesar de tudo isso, eu estava bem, estava me sentindo muito bem, no controle da situação e capaz de tomar decisões por mim mesmo. 


Matheus Borges (@matheusmedeborg) nasceu em Porto Alegre, 1992. É formado no curso de realização audiovisual da Unisinos e egresso da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil. Suas histórias já foram publicadas em revistas literárias no Brasil e no exterior, bem como em coletâneas e antologias. No cinema, atuou como roteirista em “A Colmeia”, longa-metragem vencedor de cinco prêmios na edição 2021 do Festival de Cinema de Gramado. Atualmente, é mestrando no programa de pós-graduação em letras da UFRGS. O romance “Mil Placebos” (Uboro Lopes, 192 pág.) é seu livro de estreia.  


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