Olhos em vírgula

Com aposta no ecossistema de criptomoedas como alternativa de viabilização financeira no mercado editorial, o NADA∴Studio Criativo lança primeiro livro no formato phygital — que existe simultaneamente nos formatos físico e digital, com tiragem limitada. Trata-se do livro “Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública” , livro em poesia da psicóloga da estreante, trabalhadora do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e especialista em Saúde da Família e Comunidade, Janaína Steiger.

Inicialmente formulado como um Trabalho de Conclusão de Residência em Saúde da Família e Comunidade, Janaína se inspira na poética de autores como Conceição Evaristo, Aline Bei, Manoel de Barros e Ana Martins Marques e de forma poética recria o cotidiano da saúde pública,durante o período de pandemia da covid-19, numa interlocução literária sobre a vida real. ” Que ora sussurra, ora grita”, como define a autora.

A baixo, três poemas do livro “ “Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública”

Estado de pandemia 

respira 

são tempos de tirar o ar 

quem dera o fôlego 

é pandemia  

e o intuito era iniciar este trabalho 

com texto corrido, frases engatilhadas  

parágrafos justificados 

pontuação adequada 

que faz 

respirar 

respiro 

 mas não consigo 

o intuito era postergar ao máximo para  

escrever a palavra:  

 pandemia 

e lá se vai a segunda vez 

 mas não consigo 

tem gente com falta 

de ar 

de comida 

de casa 

de trabalho

19 

de toque 

de olhar 

e agora me resta uma rima ruim 

de poesia com pandemia 

da qual tento fugir alternando 

com poema 

 — a verdade é que nunca gostei de rimar 

e agora me resta 

fragmento 

e agora me resto 

fragmento 

e agora? 

 escrevo  

é urgente 

uma situação de calamidade pública 

de jamais vista magnitude 

números que perdem a tangibilidade 

o número de pessoas perdidas 

que perdem o significado 

e a vida 

Mário Quintana escreveu 

em Emergência 

“Quem faz um poema abre uma janela. (…) 

Por isso é que os poemas têm ritmo — 

para que possas profundamente respirar. 

Quem faz um poema salva um afogado” 

e tem faltado ar.

Administrativo 

“olá, bom dia 

qual é o número 

do teu prontuário?” 

qual é o número 

qual é o número 

que me diz quem tu és? qual é o número 

que o sistema 

diz que  

tu é? 

qual é o teu número? digo, nome? 

qual é o número 

do teu prontuário 

que vem antes 

da história 

das marcas 

da pessoa 

do nome 

da cor 

da dor 

qual é?

 

e além do número 

qual 

quem  

é? 

nos prontuários físicos 

velhos 

envelopes pardos diziam 

grossos cheios 

ou bem finos 

dentro repletos 

papéis vivos  

relatos de consultas 

histórias 

memórias 

escritas à mão 

e a muitas delas 

timbres e olhares 

em letras de fôrma 

separadas ou cursivas 

na época do papel material 

menos problema ou dependência 

do sistema do computador 

mas na folha 

uma lacuna 

 [ silêncio? ] 

sussurra 

a quem escuta de perto:  

grita 

grita

o problema estrutural 

do sistema outro 

o Sistema Socioeconômico 

capitalista 

(e racista) 

quesito raça/cor:  

 [ ] 

em branco15 

hoje 

em novo registro 

o Sistema Computadorizado 

barra 

pede nome idade CPF mas 

“qual a cor dela?” 

vou perguntar 

“não precisa vou colocar 

branca” 

“não precisa te incomodar 

afinal 

não tem diferença 

se somos todos iguais 

e somos 

(somos?) 

para que(m) importa?” 

15 Tu vais te dar conta, mas o racismo é um dos problemas estruturais em  que mais vamos reparar ao longo do nosso caminho. Quem nos acompanha  e auxilia nesse olhar são diversas autoras e autores negras e negros, como  Neuza Santos Souza, Lélia Gonzalez, bell hooks, Grada Kilomba, Audre  Lorde, Frantz Fanon e Silvio de Almeida, para apenas citar alguns. 

 

pra mim  

pra ti 

pras políticas públicas 

com dados descaradamente 

sub-registrados16 

pelo descaso 

pelo (re)lapso  

racismo velado 

na vergonha de se perguntar 

“qual é a tua raça/cor? preciso saber  

porque é autodeclarado” 

é difícil, eu sei 

se perceber marcado 

mas mais difícil ainda 

é morrer com o quesito 

raça/cor  

marcado errado 

branco, esse é também nosso fardo17 

violência obstétrica 

mortalidade materna 

covid 

16 O sub-registro do quesito raça/cor no sistema do SUS é histórico e, durante  a pandemia, teve suas consequências ainda mais evidenciadas, por dificultar  a identificação da desigualdade da população negra também no que tange à  prevalência de covid-19, entre tantas outras. Diversos meios de comunicação  (SBMFC, 2020; Lisboa, 2020; CNS, 2021; Cruz, 2021) já trouxeram esse  tema à tona, assim como autoras como Oliveira, Soares e Soares (2021). 

17 Marco aqui meu lugar enquanto pessoa branca e o faço na companhia  de Lia Vainer Schucman (2014) e Maria Aparecida Silva Bento (2002), que  abordam o conceito de “branquitude”. 

seguem  

atingindo majoritariamente  

a população preta18 

e seguem 

passando 

pano 

e seguimos 

passando 

em branco 

a primeira pessoa a falecer 

por covid 

era mulher 

era preta 

mulher preta pobre doméstica 

não necessariamente nessa ordem 

estruturalmente nessa combinação19 

pergunto 

às lacunas 

não marcadas 

18 Aqui te mostro, com orgulho, a Política Nacional de Saúde Integral da  População Negra (Brasil, 2017), que vai nos contar sobre a importância de  um olhar singular à saúde das pessoas pretas, que têm especificidades a serem  consideradas, e o combate contra o racismo como parte indissociável desse  cuidado. A Política mostra as desigualdades que foram amplificadas durante  a pandemia de covid-19, sobre o que nos conta dos Santos et al. (2020). 

19 Conhece o conceito de interseccionalidade? Ele é um dos principais  norteadores desse caminho que agora percorremos juntas, pois evidencia  a interlocução e a interdependência entre diferentes marcadores sociais da  diferença, como gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual, e destaca a não hierarquização das opressões geradas a partir  deles. Próximas de nós nessa caminhada estão Kimberlé Crenshaw (1989),  Patrícia Hill Collins (1990) e Helena Hirata (2014).

cujos espaços brancos 

podem marcar 

toda uma vida 

ferida20 

ferem também as marcas  

impostas 

por quem carrega 

nas costas 

a norma 

e o sistema segue a ferir 

de mãos dadas 

com o cistema21 

que 

a ferro 

CID22 

e brasa 

fere 

20 Novamente temos Lia Schucman e Cida Bento por perto, viu? E o con ceito de branquitude volta, relacionado ao processo de “embranquecimento”  da população negra brasileira, que carrega a marca de “outro” e “diferente”,  enquanto brancos, ao não terem seus corpos, discursos e culturas marcados,  são colocados no lugar de norma. Grada Kilomba aproxima-se também para  nos contar sobre a dupla invisibilidade das mulheres pretas, que comumente  são deixadas de fora das discussões e grupos feministas, bem como de coleti vos de pessoas negras sobre o racismo (onde se evidencia o lugar do homem  enquanto norma universal). 

21 Aqui faço referência à cisnorma e à cisgeneridade, conceitos importantes  dentro dos movimentos e estudos de gênero que abordam a despatologização  da transgeneridade. Em muitos outros momentos durante nosso percurso,  voltaremos a olhar para isso e, para tanto, temos a companhia de autoras(es)  como Sofia Favero, Judith Butler, Paul Preciado e Vincent Goulart.  

22 Código Internacional de Doenças.

e os corpos dissidentes marca 

o cistema  

não teme nada 

ancorado na cisnorma 

que invisibiliza 

violenta 

mata 

pessoas trans 

— mas com elas 

também goza23 

o Sistema Computadorizado 

esconde o nome social 

que antes de mais nada 

é direito24 

e não tem por favor  

exceção cara feia  

alegar desconhecimento 

— é também 

mas vai além 

questão de respeito 

e enquanto a gente fala 

de fluxos  

23 O Brasil segue há anos liderando o ranking de países que mais matam  pessoas trans (Benevides e Nogueira, 2020), da mesma forma que o faz em  relação ao consumo de pornografia com pessoas trans (Benevides, 2019). 

24 O decreto nº 8.727 (Brasil, 2016) dispõe sobre a garantia do uso do  nome social e reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis  e transexuais.

que de nada tem de fluidos 

de protocolos 

normas técnicas 

e números 

uma travesti é assassinada 

uma mulher trans  

se mata 

um homem trans  

tem o acesso ao posto de saúde 

negado

Território 

alcanço a rua 

apresso o passo 

e segue o cuidado 

segue o cuidado 

avanço um pouco 

há pressa pro tato? 

o posto se abre 

o posto se abre 

há presa à vontade 

um posto que transborde onde a vida acontece 

a vida acontece 

cuidado ao transbordar no território escorre espero que não pese  que não haja pressa  que não haja presa 

sabe, é difícil 

não virar presa da pressa que nos rodeia 

que nos habita

às vezes de tanto sentir 

já não faz mais sentido 

(faz?) 

é que 

todo detalhe 

tão precioso 

quanto ínfimo 

às vezes parece bobo 

parece tonto 

diante do tanto 

de tudo 

que me rodeia 

tonteio 

e o  

real  

me toma 

 i n t e i r a 

mas carolina maria de jesus 

lembra 

que mesmo em meio  

ao absurdo do cúmulo  

da miséria fome desamparo 

“quando cheguei na favela 

a porta estava aberta. 

o luar está maravilhoso”

e quando chego no posto 

contexto outro mas 

os portões estão abertos 

o sol está maravilhoso 

e os olhos em vírgula das colegas 

a postos 

carolina conta 

sobre não se deixar sucumbir 

nem ao horror 

nem à beleza 

sigo atenta 

me fortaleço 

ora saio 

ora recolho 

escrevo 

e sigo 

repito 

já não consigo mais 

deixar passar 

o que te conto 

não me deixo passar 

nem a limpo 

nem em branco 

me sujo 

e brinco 

com a seriedade 

de quem ensaia

um traço de dança 

um passo de palavra 

em boba rima 

(da qual disse 

que não gostava) 

abraço 

a contradição 

a fazer poesia 

minha forma de sussurro 

menos palavra 

mais respiro 

em boba rima 

inspiro 

a fazer slam 

ou talvez poesia 

minha forma de grito 

sob e sobre a nossa 

pandemia

E

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 Janaína Steiger 

nascida em Porto Alegre/RS. É escritora, poetisa, psicóloga especialista em Saúde da Família e Comunidade e trabalhadora do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Aposta na interlocução entre a escrita e a psicologia, assim como a psicanálise, as políticas públicas e a arte. Janaína prioriza, como referências, autoras mulheres, negras e LGBTQIA+. “Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública” (132 pág.), publicado pelo o NADA∴Studio Criativo, é seu livro de estreia.

(@janasteiger


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Um comentário

  1. Versos fortes de fazer faltar o ar!!

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