Da mãe herdou os olhos, 

do pai herdou a cachaça, 

da irmã um ódio profundo, 

da vida uma cusparada na cara que lhe acertou em cheio. 

Mas nasceu com um coração de teimosia 

e se traveste toda a noite para tentar mais uma vez. 

Munique Duarte

Viu-se refletida no vidro fumê de uma vitrine. Olhou-se demoradamente. Observou os olhos cansados, a pele enrugada. Envelheceu de repente. Dormiu e acordou assim, como uma uva passa. Não era mais a jovem de pele delicada, olhar vivaz e sorriso de pérola. Estava ali diante de si mesma, observando-se, analisando-se. Por pouco não perdeu a condução. Iria visitar a amiga que há algum tempo jazia numa cama de hospital. A morte, agora, parecia espreitá-la em cada esquina que cruzava. A amiga, de profissão, caiu doente numa manhã de sábado. “Fosse uma manhã de segunda-feira”, dizia ela, “seria feriado na cidade”.

Ilka não é seu nome de pia, Blacknight não é seu sobrenome, este foi dado a ela por gentileza dos clientes que assim a apelidaram. Tão pouco nasceu assim: velha. Fora uma moça vistosa, de cabelos brilhosos e olhos de um verde esmeralda que hipnotizavam quem muito os olhasse. De voz aveludada, um corpo bem feito, seios que apontavam para o céu e uma boca carmim. Era o desejo nem tanto silencioso dos homens daquela cidadezinha que mal existia no mapa. Por onde passava arrancava olhares e comentários. Mas também não nascera assim, bela jovem. Fora uma criança esmirrada, de pele ressecada. Nascera em uma casa de pau a pique, no interior do sertão mineiro. Convivera com a miséria e um pai bêbado que batia na mãe e em quem se atrevesse a entrar na frente. Não estudara, mas conhecera bem o peso de uma enxada, a dor da fome e da sede. Aos quinze anos perdera a mãe e a irmã mais velha com quem aprendera a escapar dos maus tratos do pai e a não se contentar com tão pouco. Cansada daquela vida famigerada, fugiu, sem olhar para trás. Do pai não se sabe o destino, provavelmente enterrou sua vida em algum boteco gastando a féria do dia em cachaça e vociferando pelos cantos da boca. Dos irmãos teve notícia há alguns anos. Todos ainda vivem naquela cidadezinha remota, do mesmo jeito como foram deixados por ela há anos e anos. Cortara os laços que a ligavam ao passado. Viajara durante dias e noites até chegar à capital. Morara debaixo da ponte, pedira esmolas, recebera nãos com muito mais frequência do que se pode imaginar, como cusparadas que a humilhavam. Mas nascera com um coração de teimosia. Aprendera, desde cedo, a esquivar-se, a seduzir, a esperar. Uma vez, quando menos esperava, encontrou um senhor calvo de olhos pretos e pele morena. Pediu alguns centavos para o pão do dia. Recebeu um sorriso e um convite. O que poderia ser pior do que estar na rua, desprotegida e sozinha?  No mesmo dia, Ilka viajou alguns quilômetros com o homem até chegar em uma cidade sem graça. A promessa era de que ela não mais precisaria mendigar migalhas pelas ruas. Banho quente, roupas novas e até perfume foram os primeiros agrados a Ilka. Uma boa noite de sono em uma cama só para ela. Juntou-se a outras meninas que também acreditavam ter tirado a sorte grande, mas depois de duas semanas dessa regalia nunca antes provada, o homem calvo e generoso resolveu cobrar pela hospedagem e tudo mais. Perdia, naquela noite, a sua pureza e o resto da esperança de que a vida poderia lhe sorrir. Depois, foi oferecida a outros homens que pagavam para tê-la na cama que deixou de ser só sua. Pobre Ilka, não conhecera o amor. Achava todos os homens asquerosos, ruguentos. Tomava banhos intermináveis logo que o expediente terminava e prometeu pagar sua dívida ao homem calvo, sair daquele antro e tentar vida nova. Era teimosa e determinada. Em uma manhã de outubro, encarou-o de igual para igual, deu-lhe a notícia libertadora. Pegou sua pequena trouxa e saiu, mais uma vez, sem olhar para trás. Andou por horas e chegou a um posto de gasolina. Conseguiu tomar um banho sem ter que pagar, afinal, o frentista ficou hipnotizado pelo verde esmeralda de seus olhos. Ofereceu-lhe um pingado, ao qual não houve recusa. Despediu-se do bom homem e retomou sua caminhada, queria chegar à cidade o quanto antes e estabelecer-se. Juntara durante um tempo uma quantia que daria para se virar até encontrar um emprego. Mais algumas horas e já estava na praça central onde havia uma pequena igreja, uma sorveteria e bancos povoados por senhores e senhoras contemplando a correria das crianças e os beijos apaixonados dos jovens amantes. Parou, olhou ao redor, sentou-se em um dos bancos, fixou seu olhar na cruz alta da torre da igreja, mas não conseguiu rezar. Seu coração de teimosia estava cheio de farpas e seu corpo doído da longa caminhada. Refez-se um pouco e procurou a pensão mais em conta para passar a noite. Na manhã seguinte procurou emprego e por não ter instrução voltou à pensão, sem sucesso. Durante sua volta, encontrou o frentista que a havia acolhido no posto da beira da estrada. Este, ainda hipnotizado, dirigiu-lhe a palavra convidando-a para um sorvete. Aceitou o convite, atacou o sorvete com fome de leoa e deparou-se com o frentista a devorá-la com os olhos. Porém, não se intimidou. Encarou-o e logo, sem pensar muito, compreendeu o próximo passo. Em pouco tempo já estavam nus devorando-se um ao outro, e na calada da noite o frentista, saciado, vestiu-se, depositou alguns trocados no criado mudo, assim como Ilka o havia pedido. Foi para casa satisfeito, mas sem ter provado do gosto provavelmente doce daqueles lábios carmim. Prometeu voltar. Poderiam ter começado ali um belo romance, mas a moça entendeu que não nascera para romances. Precisava comer e pagar as contas. Estabeleceu-se, neste instante, o começo de sua vida. Foi expulsa da pensão acusada de fornicação. Alugou um sobrado simples, decorou-o como pôde e passou a acolher em sua casa tantas outras moças que também precisavam viver. Juntas, recebiam frentistas, borracheiros, guardas de trânsito, bancários, advogados. Toda espécie de homem e logo estava inaugurado o estabelecimento de Ilka, uma bela mulher de gestos delicados, olhar sedutor e uma boca de tirar o fôlego. Todos que começaram a frequentar sua casa queriam provar dos seus beijos, porém ela nunca permitiu que ninguém tocasse em seus lábios. Aqueles que se atreveram saíram de seu estabelecimento arrastados. Ora, uma mulher que se preze tem o controle de seu corpo e de suas vontades. Beijar estava fora de cogitação. Afinal de contas, o beijo é uma prova de amor e amor era a última coisa que ela poderia querer. Considerava os homens uma raça desprezível, serviam apenas para lhe pagarem as contas, usava e abusava deles. Seus poderes de sedução ficaram conhecidos e vinham homens de todos os cantos terem com ela alguns momentos de prazer que diziam valer a pena e o bolso. Ao contrário do que se possa pensar, o fato de não conseguirem arrancar de Ilka um beijo sequer era um afrodisíaco ainda mais potente e, com isso, a freguesia aumentava a cada dia. Todos apostando em quem conseguiria conquistar os ósculos mais desejados da cidade. Aumentavam as apostas, aumentavam os lucros, simples assim. Dizem que muitos dos homens que a conheceram nunca mais foram os mesmos. Alguns diminuíram consideravelmente suas riquezas ao deixarem nos aposentos de Ilka valores imensuráveis, joias, ações. Tudo em nome do prazer. Ninguém nunca a via caminhar pela cidade durante o dia. Para saber de Ilka só mesmo à noite, durante o expediente. E quanto mais negra a noite, melhor eram os seus serviços. Daí o sobrenome Blacknight. Enfim, não conseguiu um emprego como balconista, mas conseguiu sair da miséria e em pouco tempo já podia se regozijar de uma pequena fortuna. O sexo para ela era um trabalho tão digno como outro qualquer e se orgulhava disso, era uma excelente profissional, das poucas que ainda existiam no mercado. Depois de alguns bons anos de trabalho resolveu que iria se aposentar. Ainda era jovem, teria muitos anos pela frente, mas decidiu viver uma outra vida, em outro lugar. Entregou sua casa à primeira moça que veio se juntar à sua equipe. Distribuiu presentes às raparigas como forma de gratidão pelos serviços prestados com tanta fidelidade e preparou uma linda festa de despedida. Convidou seus clientes mais fiéis e mais generosos. Estavam todos animadíssimos, quem sabe, agora, já que está se despedindo, daria a graça de um beijo. E quem seria o sortudo? Por outro lado, pairava uma certa melancolia no ar. Nunca mais a cidade seria a mesma sem Ilka Blacknight. Ela sabia receber como ninguém. Em sua casa podia se encontrar a alegria, o prazer, a liberdade. Viviam-se momentos de puro gozo, longe das convenções sociais que escravizam. Lá, a seriedade dava lugar aos instintos, desfazia as rugas de preocupação e libertava as fantasias mais ocultas até mesmo dos mais tímidos, dos mais pudicos. Era uma terapia, que custava caro, é verdade, mas valia a pena. Inevitável que uma saudade precoce já começasse a invadir os corações sedentos de sexo. A festa começou às 19h e varou a noite estrelada e quente daquele vinte e cinco de setembro. Ilka adentrou a sala ampla do sobrado em um vestido transparente, azul turquesa, que esculpia em sombras suas curvas e acentuava os verdes olhos e a linda boca vermelha. Por que deixar todos aqueles amantes órfãos de seus carinhos, assim, tão cedo? Para um coração de teimosia, basta a teimosia. Não havia explicações, apenas a vontade imensa de ser outra em outro lugar. Quando todos, já bêbados, imploravam um beijo apenas, Ilka despediu-se. Houve quem se atirasse aos seus pés, houve quem oferecesse toda a sua fortuna. Houve quem lhe dirigisse palavras de ingratidão. Alguns faltaram com decoro, mas só alguns, os mais inconformados. Os outros logo compreenderam que aquela mulher ora Ariel ora Caliban devia ser eternizada em suas lembranças, apenas. Ilka começou a escalar a longa escada-caracol que a levaria a seus aposentos e, antes de desaparecer, olhou mais uma vez para todos que também a olhavam e viu, encostado no portal da sala de estar, um figura esguia, de chapéu panamá e um terno azul escuro. Diferente de todos os outros, este homem a olhava fixamente e podia-se ver suas pupilas dilatadas e a tensão muscular nas maçãs do rosto. Em poucos segundos Blaknigth reconheceu o homem do posto que a alimentara quando de sua chegada. O homem que, generosamente, ofereceu-lhe sorvete na praça. O homem que fora seu primeiro amante naquela nova cidade. O homem com quem poderia ter começado um romance e que sumira tão logo Ilka começasse seus trabalhos na casa nova. Sim, ela sentira falta do corpo quente e suado do frentista. Havia desenvolvido por ele um carinho e uma gratidão que nunca pudera pagar. Ali estava a figura que, naquele momento, fez com que Ilka estremecesse. Uma troca de olhares e o frentista rompeu o salão, desviando-se dos homens agora distraídos com as meninas dançantes e alcançou os primeiros degraus ao encontro da bela dama com quem já vivera momentos inebriantes. Sem palavras, os dois tornaram-se um, e envolvidos pelos lençóis macios que ainda guardavam o frescor da juventude, entrelaçaram-se e protagonizaram um momento único na vida de Ilka. O beijo. A despedida sonhada por todos os que agora se contentavam com as meninas dançantes no salão. Ele sabia. Ela sabia. Não mais se veriam, não mais se tocariam, não mais se amariam. Não mais se beijariam. Seriam um para o outro apenas uma lembrança, apenas um lapso nos momentos de devaneio. Mal a manhã chegou, Ilka despachou suas malas e seguiu rumo à sua nova vida, mais uma vez sem olhar para trás, levando consigo o gosto ainda quente e molhado do beijo dado em sua despedida. Mordiscou o cantinho da boca para sentir mais uma vez a sensação do primeiro beijo, como uma adolescente entorpecida pelas ilusões da idade. Seguiu adiante, estabeleceu-se em sua nova casa, comprada com afortuna economizada por ela dos antigos clientes. Linda casa, lindo jardim, bem maior que o sobrado que ficou para trás. Ali viveu o resto de sua vida entre lembranças que tentava esquecer e amigos novos que fizera ao chegar e que nada sabiam de seu passado. Era uma dama, generosa e bela, apenas. Frequentava as festas, os encontros sociais, os chás beneficentes. Nunca tivera medo de encontrar-se com alguém do passado, sabia ela que os que ficaram para trás temeriam ver desmascaradas as suas escapadelas do lar e seus segredos confidenciados em longas noites escuras na cama de Ilka. Agora, tomara para si seu nome de batismo. Cândida, Senhora Cândida. De gestos delicados, olhar profundo, sorriso leve encantava a todos a sua volta. Nunca mais voltara à cidade que lhe deu os proventos do presente. Nunca mais se encontrara com o único homem capaz de lhe beijar os lábios. Respeitada pelos amigos que fizera em sua nova vida, era outra em outro lugar. Hoje, pela manhã, recebeu um telefonema a cobrar e a voz tremida pedia que ela voltasse para uma outra despedida. Sua amiga de profissão estava moribunda e queria vê-la. Pensou, titubeou, mas uma lágrima de saudade, de melancolia brotou em seus olhos. Era Dalva, doente, cansada, amiga de luta com quem dividira momentos de tristeza e alegrias. Não podia dar as costas a ela. Não podia apagar de sua vida a vida que levara e a amizade construída. Era leal, era generosa. Desta vez não pediu ao motorista que lhe levasse a parte alguma. Arrumou uma pequena mala e foi, sozinha, ao encontro de sua amiga. Tomou o táxi e a cada quilômetro percorrido uma lembrança, um arrepio. Chegou enfim à cidade, desembarcou, caminhou, era dia de um sol radiante. Parou em um ponto de ônibus em frente a uma vitrine fumê onde se viu refletida. Olhou-se demoradamente. Quase perdeu a condução. Envelheceu de repente. Dormiu e acordou assim, feito uva passa. Dalva morreu antes de poder se despedir como queria. Cândida não se despediu, apenas olhou para o corpo cansado da amiga e sentiu a morte espreitá-la. Mas seu coração era de teimosia e teimou em não morrer tão cedo, mesmo que tão velha.

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Joseani Adalemar Netto É natural de Santos Dumont, Minas Gerais. Formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Educação Infantil, Especialista em Educação Contemporânea pelo IF-Sudeste, campus Santos Dumont e Mestre em Letras – ProfLetras UFJF. Leciona Língua Portuguesa e suas Literaturas na Rede Municipal e Particular de Santos Dumont. É membro efetivo da Sociedade Brasileira dos Poetas Adravianistas (SBPA), Coordenadora do Projeto de Leitura LeiturAMA-SD, membro atuante da Ação em Movimentos Artísticos de Santos Dumont (AMA-SD), fundadora e coordenadora da Academia Brasileira de Autores Aldravianistas Infantojuvenil – SD (ABRAAI-SD), membro correspondente da Academia Portuguesa de Ex-Libris (APEL). É contadora de histórias, palestra sobre Educação e Literatura, ministra oficinas e atividades culturais voltadas para o incentivo à leitura e à escrita tanto para estudantes quanto para a formação de professores na cidade de Santos Dumont e região. Tem seus textos publicados em antologias literárias como o Livro IV, V, VI, VII e VIII e IX das Aldravias; Antologia Juiz de Fora ao Luar; Antologia Múltiplas Palavras, UBT (JF), e-book Cronistas da Quarentena (2021), Livro foto-poema pela Lei Aldir Blanc. Possui capítulos em livros pedagógicos voltados para o Letramento Línguistico e Literário, artigos publicados em jornais e revistas voltados para a Educação. Já prefaciou livros e quarta capa para vários outros escritores e poetas. Trabalha como revisora linguística em várias publicações. É colaboradora externa no Projeto Propostas Pedagógicas para o Ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, atuando como co-orientadora dos bolsistas de Letras na construção de sequências didáticas, do IF-Sudeste, campus Juiz de Fora e atua também no projeto de pesquisa Performances do Narrador, UFMG, com o olhar para as obras de Conceição Evaristo. Participa de forma atuante em oficinas, palestras, cursos, saraus e atividades afins. Possui certificados e medalhas de Mérito Cultural por sua atuação como fomentadora da cultura local e da região, oferecidas pela SBPA, Lesma Poesia, Rotaract, Interact, Câmara Municipal de Santos Dumont, dentre outros. 


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