A ciência como desencantamento: suas contradições e a construção de direitos humanos  

O presente ensaio discutirá a obra “Frankenstein” escrita pela intelectual Mary Shelley e o texto “A invenção dos direitos humanos” da historiadora Lynn Hunt. O objetivo principal é realizar apontamentos acerca da ciência como dispositivo de contradições, racionalização e desencantamento do mundo, termo este cunhado por Max Weber e, além disso, realizar o diálogo entre consequências do fazer científico e suas implicações sociais atreladas aos direitos humanos.   

Monstros são os padroeiros de nossas bem-aventuradas imperfeições  

(Guillermo del Toro, discurso de aceitação do Globo de Ouro de melhor direção pelo filme “A forma da água”).  

Frankenstein ou o Moderno Prometeu é um romance gótico, considerado precursor das obras de ficção científica, escrito por Mary Wollstonecraft Godwin Shelley e publicado no ano de 1818, com edição revisada em 1831. Shelley viveu na Suíça em 1818 e nesse local um pequeno grupo foi formado por ela e seu marido, juntamente com o amigo Lord Byron, em que reuniam-se para longas conversas filosóficas influenciadas pelos ideais da revolução francesa. Após a leitura conjunta de histórias de horror alemãs, Lord Byron propôs ao grupo a ideia de que cada um escrevesse sua própria história de fantasmas. Assim, foi concebida a fábula da tentativa humana de recriar os desígnios de Deus, enquanto Shelley buscava estar à altura da produção literária de seus genitores, a escritora e ativista pelo direito das mulheres Mary Wollstonecraft e o escritor e filósofo William Godwin, ambos já reconhecidos à época.  

A obra obteve sucesso imediato. Passados mais de duzentos anos de sua primeira publicação, Frankenstein ainda pode nos dizer algo sobre a constante contradição entre criação e destruição, núcleo ontológico do mundo em que vivemos. Essa persistência de significação a identifica como uma história clássica, pois os sentimentos de esperança, remorso, ambição, piedade, medo, amor, tristeza, ódio, empatia, curiosidade, revolta, paixão, desilusão, luto, soberba, compaixão, arrogância são os mesmos que nos criam e nos destroem todos os dias. 

LYNN HUNT E A IMAGINAÇÃO COMPARTILHADA. 

A concepção da obra ecoa a formulação da noção moderna de individualidade/liberdade individual e os efeitos psicológicos (e sociais) daí decorrentes, propiciados pela popularização tanto da leitura quanto da escrita pelo menos a partir do Século XVI. Em sua obra “A invenção dos direitos humanos – Uma história”, Lynn Hunt aponta que o conceito de direitos humanos só adquire sentido quando as pessoas passam a compartilhar o processo de “identificação imaginativa” que seria capaz de sustentar uma percepção sobre a condição de humanidade de grupos subalternizados, status que lhes era negado na ordem social estática e hierárquica até então existente.  Essa empatia estaria no cerne do reconhecimento da extensão de direitos não só ao grupo de relacionamento imediato, mas às pessoas em geral, dado que todos estariam sujeitos a contingências comuns, pelo menos no que toca aos domínios íntimos da subjetividade. Assim, a construção de si como indivíduo atrela-se ao reconhecimento dessa individualidade ao outro (aqui considerados os limites que essa alteridade poderia alcançar no século XIX na Europa).  

A literatura serviu como um grande catalisador de afetos que passaram a circular naquelas sociedades. Os sentimentos, ao atingirem as pessoas indiscriminadamente ao sabor da fortuna, foram a porta de entrada para a construção de novas formas de sociabilidade que prepararam parte da população europeia para as transformações operadas pela consolidação do modo capitalista de produção, as quais geraram uma nova criatura: desmembrada, desconjuntada, desenraizada, solitária, ignorante quanto às novas linguagens e os novos saberes produzidos a partir da ciência, pequenos milhares de Frankensteins que tiveram que se destruir para serem reconstruídos aos moldes da nova estrutura social ditada pelo capital, aqui apenas metaforicamente chamado de Viktor. 

Assim é que Frankenstein pode ser considerado o padroeiro das imperfeições e do sentimento de deslocamento, inadequação e não pertencimento ao novo mundo que muitos experimentaram no Século XIX, emoções plenamente identificáveis ainda neste início do Século XXI, em que observamos o aprofundamento e a aceleração do ciclo interminável de criação e destruição do sistema produtivo mundial. 

É também, por fim, a prova de que a arte existe porque a vida não basta. O que a razão não alcança pode ser plenamente apreendido pelo sentimento. 

MARY SHELLEY: A CIÊNCIA COMO DESENCANTAMENTO DO MUNDO  

       Na obra “Frankenstein”, Mary Shelley ao desenvolver a perspectiva literária de construção de uma “criatura monstruosa” demonstra que sem Deus para se agarrar, o próprio homem se torna deus e, com isso, prisioneiro de si mesmo e do seu próprio pensar. Sob essa perspectiva literária, a autora evidencia em um dos trechos da obra:  

“Por que, trazes à minha lembrança? redargui, circunstâncias que estremeço e das quais, miseravelmente, sou autor de origem? Maldito dia, abominável monstro, em que viste a luz pela primeira vez! Malditas (embora eu amaldiçoe a mim mesmo) as mãos que te criaram. Tornaste-me hediondo para além do que se pode exprimir. Fizeste-me impotente para julgar se sou justo contigo ou não. Some! Poupa-se da visão de tua odienta forma!”. (SHELLEY, 2015, p. 187).  

Sob esse olhar, é possível compreender a dimensão da quebra de expectativa do criador para com sua criação. Isso porque Victor Frankenstein, se mostra desencantado com sua ciência, à medida que também valoriza o fazer científico em nome da “racionalidade” em um contexto do século XIX. Dessa maneira, o desencantamento que Mary Shelley revela ao leitor é uma peça crucial para se compreender o impacto da ciência e sua dimensão psicossocial. O homem moderno desencantado, em paralelo ao que o sociólogo Max Weber nomeia, por exemplo, de processo burocrático. Este que revela o pessimismo e a falta de poder e controle diante de uma ciência marcada pela produção e pelo individualismo. 

Shelley, ao apresentar determinada crítica diante da demarcação da ciência como forma de produção de conhecimento legítimo, quando pautada em uma dominação da natureza na contradição de transformações em uma sociedade burguesa, provoca a pensar “o moderno” a “invenção” no campo da sensibilidade desencantada. Para além dessa ótica, está o tensionamento do poder como ferramenta científica de dominação, o homem no processo de dominação, a linguagem na perspectiva de controle, em que o criador domina a criatura e quando isso não é possível, o coloca no local de estranhamento consigo mesmo.  

 Os conceitos trabalhados em Frankenstein pela escritora Mary Shelley são relevantes para a análise social das implicações do fazer científico em contexto de modernidade e contemporaneidade. Nesse sentido, a busca do ser “moderno” em uma espiral de “efeito e causa”. A causa está relacionada à materialidade, ao progresso da ciência, à transformação, ao controle da natureza e o efeito, às consequências da produção científica, em que o homem criou condições para sua própria destruição em sociedades, atravessadas por consequências psicológicas, que são resultados do desencantamento científico, social, político e econômico.  

 DIÁLOGO ENTRE LYNN HUNT E MARY SHELLEY 

O rápido avanço científico que parte do mundo experimentou no início do século XIX mostrou que o engenho humano encontra poucos limites fora de si mesmo. A constante sucessão de inovações e aprimoramento da técnica transformou nossos braços em asas e nossos pés em foguetes, mas fechou nossas mãos, que não se tocam, e paralisou nossos pés, que não se dirigem ao outro. A mesma inteligência que conseguiu identificar de forma inédita a relação entre energia e massa dos corpos (E=Mc²) gerou a bomba atômica. Determinada paixão pelo conhecimento encontrou a cura para diversas doenças, mas engendrou o racismo e o Holocausto. 

 O interesse em conhecer os espécimes vegetais, minerais ou animais, em desvendar o segredo da vida e mudar o mundo levou ao potencial colapso climático. Na obra de Mary Shelley, o personagem Victor Frankenstein indaga a estranheza do conhecimento provocando o leitor ao pontuar: “Que estranha é a natureza do conhecimento! Uma vez que adere à mente, ali se fixa como limo à rocha.” (SHELLEY, 2015, p. 210). Essa afirmação, construída sob perspectiva científica moderna, a qual perdura hodiernamente, revela a problemática de métodos utilizados cientificamente em nome de “uma ciência fixa” em rochas que devem ser quebradas, questionadas, renovadas e adaptadas. Em contrapartida, Hunt apresenta o olhar entre as diferenças e possibilidades do fazer científico que repensa o social, na encruzilhada dos direitos humanos.  

           Diante disso, como resgatar o sentimento de pertencimento em um mundo desencantado? Como superar a alienação do trabalho? Como reapresentar a humanidade à empatia estendida que se encontra soterrada sob os entulhos produzidos pelo sistema capitalista? Como reconhecer a parcela humana desse monstro que se renova, se adapta e se mantém à espreita, em constante ameaça à humanidade que lhe deu à luz? O Frankenstein nos diz sobre os antagonismos que nos cercam e nos formam. 

REFERÊNCIAS  

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. [s.l.]. Editora Companhia das Letras, 2009.  

MARY SHELLEY. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mary_Shelley&oldid=64036003>. Acesso em: 20 jul. 2022. 

SHELLEY, Mary. Frankenstein: Contado por Ruy Castro. [s.l.]. Editora Seguinte, 2014.  

WEBER, M. Ciência e Política – Duas Vocações. [s.l.] Editora Cultrix, 2015. 

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Um comentário

  1. Análise muito pertinente. Em tempos onde o homem questiona se não foi longe demais, ao criar as IAs, revisitar Frankenstein é um farol, um sinal de alerta sobre o tênue fio que separa nossa humanidade do seu autoflagelo e destruição!👏👏👏👏

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