Semana passada meu amigo Fernando, educador social, me convidou para alimentar as tartarugas no Parque da Redenção. Para quem não conhece, Parque da Redenção é um tradicional parque de Porto Alegre, com lagos e área verde, e um espaço onde historicamente, ocorreram encontros culturais. Compramos ração para cachorro no caminho enquanto ele me explicava que, ao contrário do que se pensa, os quelônios têm uma dieta de proteína, não de fruta ou vegetais. Sentamos na beira do lago e enquanto atirávamos a ração, ele me mostrava a diversidade que habitava ali: alguns tipos de cágados, tigres d’água, cabeça de cobra, de barbicha e uma outra espécie que não identificamos. Enquanto fazíamos isso, em plena Porto Alegre, ainda podíamos ouvir as buzinas dos carros, as sirenes de ambulância e da polícia, e aquele ruído de fundo constante da capital gaúcha à nossa volta, quebrando o ruído surgiram pássaros, e o Fernando foi nomeando nossos amigos anfitriões (verdadeiros donos do espaço), cardeais, martins pescadores, entre outros. Me escancarando como um profundo desconhecedor da fauna.
Esse meu amigo veio de São Paulo há dez anos, e conta como ainda o surpreende ter um cinturão verde com animais e árvores no meio da urbanidade porto-alegrense. Neste dia me falou que Porto Alegre lhe lembrava a capital paulista nos anos 80, quando esta ainda não tinha sido tomada por uma infestação de edifícios de vidro espelhado, concreto e automóveis, e que hoje pouquíssimas árvores e pássaros habitam aquele deserto cinza. Essa constatação de Fernando ficou ecoando em minha mente durante a semana: o que será aconteceu nesses 40 anos com São Paulo e qual a possibilidade de que a capital gaúcha também tenha esse desaparecimento da sua fauna e sua flora?
Infelizmente a resposta me acompanha com más notícias, provavelmente o caminho será o mesmo se a política urbana seguir neste ritmo e rumo. A toda hora surgem denúncias do aparecimento, neste mesmo parque de armadilhas para captura de gambás, animais inofensivos e que mantém o equilíbrio do ecossistema, sendo predadores de escorpiões e insetos. As armadilhas aparecem, sem surpresa, no único espaço do parque concedido à iniciativa privada, um complexo gastronômico de acentuado mau gosto incrustado próximo ao lago dos meus queridos amigos quelônios, inaugurado em 2022.
E é em meio a um discurso de empreendedorismo, renovação e de privatização de espaços públicos, acompanhado por um lobby descarado da especulação imobiliária e desmanche dos patrimônios coletivos da cidade, que a atual lógica do neoliberalismo selvagem segue ameaçando não só a Redenção, mas também outros espaços de Porto Alegre, como o Parque Marinha e a Orla do Guaíba. Parece soar um pouco alarmista associar a colocação de armadilhas para capturar a fauna que “ameaça” os estoques de comida de um espaço privatizado, com a esterilização das pedra da capital paulista, mas a lógica neoliberal e de especulação imobiliária ligada a grandes empreiteiras têm uma agenda que escala, e talvez nem tão lentamente, para ir plantando desertos de viga, aço e vidro nos espaços por onde saliva desejante de lucro. Quarenta anos dessa semeadura que apaga os ecossistemas, e a diversidade, enquanto a vida que se equilibra ainda pulsa no meio desses dos condomínios e shoppings que nos asfixiam com suas grades cercas elétricas e nos levam à uma nova São Paulo. Nada contra a cidade, adoro a capital paulista, mas a uso como parâmetro para demonstrar que ainda podemos preservar o que temos de ecossistema. Contudo, o que temos visto é que as ocupações coletivas dos espaços estão cada vez mais restritas e criminalizadas, o direito à moradia, ao lazer, a arte, a festa das vidas animais e humanas são colocadas em segundo plano, em detrimento de um lucro frio e asséptico de acionistas acumuladores de capital. As ruas à noite são policiadas impedindo a circulação, as festas e os movimentos populares são criminalizados, principalmente se estivermos falando da população periférica e negra, que historicamente tem seu acesso a cultura e lazer negado ou dificultado. Assim impera a lógica do individualismo e do auto empreendedorismo e a lógica antropocêntrica, onde o lucro está acima da vida e diversidade animal.
Dessa forma, as notícias recentes retratam de uma tragédia no estado de São Paulo, claramente envolvendo a especulação imobiliária, o crescimento urbano e o racismo ambiental. É impossível desassociar a lógica política neoliberal, da questão urbana e do meio ambiente no momento histórico que vivemos: a luta por moradia, contra a privatização dos espaços públicos e pela preservação dos ecossistemas e da diversidade cultural é inegavelmente uma só luta, e ela é uma luta improrrogável. Estamos na encruzilhada em que São Paulo esteve há décadas, me disse o Fernando. E agora parafraseando Criolo, enquanto observo os cágados, pode até não existir mais amor em SP, mas sei que em Porto Alegre ele ainda é possível.
Leonardo de Oliveira é poeta, músico, psicólogo, mestrando no PPGPSI da UFRGS, onde pesquisa arte e população de rua. Participa de projetos de música experimental, com os quais já lançou EPs e singles e do coletivo Projeto Ocupação Cultural, que organiza e articula eventos de arte e cultura com pessoas em vulnerabilidade social. Autor do livro de poesias “O Ano do Elefante” publicado em 2022, pelo selo Artera, da Editora Appris, além de participar de inúmeras publicações em revistas literárias do país e capítulos de livros. Tem súbitos interesses na fauna de exoplanetas, e nas propriedades nutricionais da quinta diminuta e dos delírios surrealistas das cigarras e seu sul possível. Busca alianças poéticas contra a inquisição espanhola na observação do micro bestiário terráqueo e seus rodinhos de pia .
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