Cuidado onde Pisa

Quando eu tinha dez anos de idade, uns meninos do meu colégio me aplicaram uma cama-de-gato. Um deles ficou agachado atrás de mim e o outro me empurrou, gritando “CUIDADO ONDE PISA!”, para que eu caísse de costas. Essa brincadeira, comum entre a garotada, gerava boas risadas. Entretanto, nesse dia foi diferente. 

Mal começaram a rir com os dedos apontados para a vítima estatelada no chão e suas faces assumiram um tom grave. O sangue esvaia pela região dorsal da minha cabeça, tingindo de vermelho o piso amarelo-claro do pátio. Fiquei convulsionando de boca aberta e olhos revirados em tela branca até a ambulância chegar. 

Depois daquele incidente, além de cinquenta pontos na parte posterior do crânio, eu manifestei um distúrbio psicológico raro entre os jovens. Meu terapeuta disse que era um “caso atípico de ptofobia”. Normalmente, o medo de cair é desenvolvido por idosos que tiveram um trauma relacionado à queda. Eles têm dificuldades para andar devido ao medo. Precisam de acompanhantes e algo para se apoiarem enquanto se movimentam. 

Comigo a ptofobia deu-se da seguinte forma: eu era capaz de me locomover sem ajuda, mas quando estava próximo a um local onde poderia haver risco de queda (escadas, buracos, beiradas e etc) eu me afastava espasmódicamente. Era como se meu cérebro acionasse um alerta, me mantendo longe do perigo. 

Fiquei famoso na cidade. Apareci no jornal, em programas de TV e ganhei um apelido: Escadinha (eu detestava). Meus pais receberam uma indenização generosa da escola e das famílias de Carlos Silva e Ricardo Maia, meus nêmesis juvenis, que tiveram que mudar de cidade por conta das ameaças dos vizinhos. O “Escadinha” virou um mártir e os dois se transformaram no símbolo da violência. 

A escola continua de pé em seus muros de concreto. Formei-me lá. 

Onze anos depois, fomos para a capital. Eu não suportava ser chamado de “Escadinha” e meus pais assentiram com a mudança.  

Porém, esse foi o início de um terrível pesadelo. 

As pessoas na cidade afundavam seus rostos em celulares e andavam apressadas nas ruas, logo, elas esbarravam! 

Sim! Era mais comum receber uma trombada na Avenida Presidente Vargas do que num Maracanã lotado. E a cada encontrão, um precipício se abria atrás de mim. Parecia que eu iria despencar e arrebentar minha cabeça no chão como uma pinhata.  

O medo de cair tornou-se insuportável e aterrorizante. 

Um dia, eu perdi por completo o controle que possuía sobre os abismos de minha mente. Sequer eu consegui aguardar, na calçada, o semáforo fechar, sem avistar alguém insinuando suas intenções de me empurrar na frente de um ônibus a 90 km/h.  

Não me chamem de louco! Por mais que eu estivesse sendo dominado pelo pavor, ainda conseguia distinguir o real do ilusório. Algumas pessoas me perseguiam com olhares zombeteiros, sorrisos malignos e pérfidos propósitos, quer você acredite ou não! Disputavam silenciosamente quem iria operar a minha destruição como naquele dia no colégio. 

CUIDADO ONDE PISA! 

Um raio gélido subiu por minha coluna até a lesão em minha cabeça e meu espírito esmoreceu.  

Por Deus, eu juro que sentia o contato de mãos em minhas espáduas. Meus cotovelos giravam para trás golpeando os pseudo-fantasmas.  

Corri para longe do meio-fio e do perigo iminente, me esgueirando por um muro de um prédio, até acender a luz vermelha do sinal de trânsito. Mas isso só piorou a questão dos olhares. Eu não conseguia esconder meu terror. Sentia calafrios. Meus lábios tremiam. Eles perceberam! Passavam os olhos sobre mim como se eu fosse uma aberração. 

ESCADINHA! ES-CA-DI-NHA! 

— Tá tudo bem, amigo? — disse um homem barbudo, vestindo um moletom surrado. Ele se aproximou tocando meu ombro. 

— Tá. — contraí o corpo e fugi pelo muro. 

— Você tá tremendo. 

— Não se-se preocupe. Tô-tô bem. — eu bodejava.  

O sinal fechou. 

 — O-o-obrigado. 

Caminhei trêmulo pela faixa de pedestres. Minhas costas concavaram-se como um casco de tartaruga. 

— Acho que você não está nada bem. — o homem seguia ao meu encalço, bradando atrás de mim. Minha vista embaçava. Não sabia se era sequela de meu medo recente ou a voz do meu perseguidor. 

CUIDADO ONDE PISA! 

— Eu te-te conheço? — perguntei olhando por cima de minha corcunda. 

— Conhece sim, Escadinha. 

Escadinha? ESCADINHA! ES-CA-DI-NHA! 

— Você… de-de-de onde eu te conheço? 

Faltavam uns 10 metros para a calçada. O suor se acumulava sobre minhas sobrancelhas e inundava meus cílios, que não conseguiam contê-lo. Meus olhos ardiam. Eu limpava-os com as costas das mãos. Os joelhos dobravam a cada passo. Sentia-me como Quasímodo, rondando tétrico pelos telhados de Notre Dame. 

— Nós brincávamos no colégio. Depois aconteceu um acidente, nossas famílias se desentenderam e minha vida mudou da água pro esgoto. Acho que toda ação tem uma consequência, certo? 

Carlos? 

— Carlos era o meu melhor amigo. Foi morto por um agiota semana passada. Tava atolado em dívidas. Assim como eu. E não adianta fugir desses caras. Eles te perseguem onde quer que você vá. 

— Ri-ricardo? — virei-me em direção a ele assim que subi na calçada. Eu arfava. Minha roupa colava no corpo como se fosse uma segunda pele. 

Ricardo se deteve ao meu lado. O rosto estendeu num esgar sombrio. 

— Bem, Escadinha, eu vou por ali. Em breve vamos nos esbarrar, tenho certeza. 

Ele tinha uma expressão cínica. Estendeu a mão na altura da minha cintura. 

O sinal abriu. 

O barulho das buzinas e dos motores dos carros fizeram meus pensamentos girarem como uma máquina de lavar. A cabeça pesou em direção ao solo e foi como se a mão de Ricardo se afastasse de mim, inversamente ao efeito de zoom. A proximidade do meio-fio me causou vertigens. 

VOU CAIR! 

Os joelhos cederam e fui tombando de lado em direção ao asfalto da avenida. O horizonte passava pastoso e lento. A buzina de um ônibus preencheu o mundo.  

Foi então que Ricardo me segurou e me puxou bruscamente para perto de si, evitando o desastre. 

— Ei! Cuidado onde pisa. 

Deu dois tapinhas em meu ombro e caminhou, no sentido contrário ao meu, assobiando uma canção de Bobby Parker. 


Joel Tavares é ator, escritor, roteirista e poeta. Em 2020, seu conto “O homem moderno” foi publicado online através da Pipa Agência de Conteúdos, que foi contemplada no edital da SECEC-RJ com o projeto “Contos Confinados”. Seu conto “O ratinho poeira” foi encenado no “Festival Up”, através de uma montagem lúdica de teatro de sombras. No mesmo ano, venceu o prêmio de Melhor Roteiro no “Festival Filma em Casa” pelo curta-metragem “Isolados em Nós”, prêmio escolhido pela roteirista indicada ao Emmy, Thelma Guedes.

Instagram: @soujoeltavares

 


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