Fumei aquele beck cínico que você me deu. Eu nem sabia fumar, você riu da minha cara. Mas fumei, tossi, tossi, e bateu. Eu nem percebi, só pensei em você, e em como a vista ficou enevoada, como naquelas fotos que vão se apagando, uma bruma emoldurando a paisagem dentro do meu olho. Era bom. E eu ia te ver, e de novo a gente dançando, a gente se encostando, se encoxando no muro lá de tras, ninguém ia notar de novo a gente sumindo e depois voltando. Sonsos. O chupão no pescoço,e eu ali fingindo que disfarçava, mas na verdade eu queria era ostentar aquela marca roxa ali bem perto da nuca, e você com aquele sorrisinho cínico, todo mundo notando, a gente nem aí – e eu muito ali – com a calcinha molhada, e depois você ia me dar a mão de novo, a gente ia dançar, rir, conversar, eu era a Cinderela do baile.
Festa americana, meninos levam refri, meninas levam salgado, naquele dia eu também levei meu peito, o decote e o sutiã meia taça. Você levou o beck, o gudan, a cerveja e o sorrisinho cínico. Essa semana, era o baile. O brinco de argola e o batom rosa shock 24 horas. Dessa vez fui preparada, botei a calça da gang pirata que comprei na feira, mas ninguém ia notar. Da outra vez eu tava largada, desarrumada, e você me pegou de surpresa. Dessa vez não. Eu estava pronta. Ia ser lindo de novo.
Um aperto na boca do estômago: eu tô nervosa ou é gastrite?
Fui andando, o calcanhar escapando pra fora da sandália plataforma desequilibrada no chão de terra. Asfalto é só na rua principal. Entraram umas pedrinhas na sola, furou meu pé, mas nem liguei.
Levanta a coluna, encolhe a barriga, empina a bunda, hoje tem.
Viro a esquina, o som pulsando, as luzes coloridas, senti aqui dentro o coração tumtum no ritmo do batidão.
Olho pro lado, ali fora mesmo, você tava agarrado, mas não era comigo. Ela tava em cima dos degraus de cimento do mercadinho fechado, sainha curta, encostada na porta de ferro, você com o mesmo chinelo preto, a mesma bermuda cínica vermelha tactel da Cyclone. Ela enfiava os dedos no seu cabelo cheio, unha com francesinha branca cínica, e você enfiava os dedos na bunda dela.
Virei a cabeça rápido.
Olhei pro outro lado. Joguei o beck longe. Tossi mais. Me vê uma cerveja? Virei a latinha, nem respirei. O estômago apertou bem ali onde tinha apertado gostoso da outra vez. Mas dessa vez apertou ruim. Pedi outra cerveja e virei. A vista ficou enevoada de vez.
Vou beber até vomitar o coração.
Luciana Xavier de Oliveira é jornalista, professora da Universidade Federal do ABC (São Bernardo do Campo, São Paulo) e pesquisadora de música popular negra e questões sobre raça, gênero e território. Doutora em Comunicação (Universidade Federal Fluminense), ganhadora do prêmio Compós 2017 de melhor tese de doutorado em comunicação do país. É autora do livro A Cena Musical da Black Rio: estilos e mediações nos bailes soul dos anos 1970 (Edufba, 2018). Foi aluna do Clipe 2021 (Curso Livre de Preparação de Escritores) da Casa das Rosas/Centro de Apoio ao Escritor- CAE em São Paulo.
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