Linda jovem, de pele macia feito algodão e preta como a noite. Nasceu e viveu em um vilarejo sem muitas novidades. Qualquer forasteiro era motivo de olhares e cochichos. Ela sonhava com a cidade grande, com suas luzes e altos prédios, imaginava com tanta verdade que, às vezes, se esquecia de tirar as roupas do varal que dormiam dependuradas e acordavam úmidas do orvalho. Era então repreendida por sua mãe que a considerava uma cabeça de vento. A mãe, acostumada aos afazeres domésticos, aos cuidados com os filhos e marido, sem tempo para conversas fiadas, quase sempre ignorava os desejos da filha, tão sonhadora, tão desejosa de um outro lugar. 

Quando a noite surgia, após o jantar, Laura assentava-se com a família em volta do rádio que transmitia as notícias da Capital, ansiosa pelo próximo capítulo da novela que ela nunca conseguia ouvir por completo, pois tinha de se recolher aos seus aposentos para descansar o corpo e voltar ao trabalho do dia seguinte. Ia para a cama a contra gosto e deixava-se embriagar pela fantasia romântica dos amores impossíveis. Assim, completava os capítulos que ouvia no rádio e que nunca conseguia terminar. Assim adormecia e sonhava. 

Um dia, em pleno sol de verão, Laura avistou no horizonte uma poeira que anunciava a chegada de mais um forasteiro. Seu vilarejo era um atalho para a estrada que levaria à Capital. Somente os que viajavam a cavalo se arriscavam a passar por ali. A estrada era de terra, irregular, cheia de buracos. Volta e meia, os que insistiam em atravessá-la de carro precisavam da ajuda dos moradores para retirarem seus automóveis dos buracos, esculpidos pela natureza um tanto selvagem daquele lugar. Mas aquele dia era diferente dos outros. Nenhuma ave de rapina no céu, nenhuma nuvem espreitando o sol, nenhum sinal. O silêncio do dia fora rompido apenas pela poeira e pelo trotar do cavalo que podia ser ouvido ao longe. 

Sem mais nem menos, Laura sentiu um frio na barriga, um arrepio que a tirou de seus afazeres para observar melhor. Não era apenas um cavalo. Eram cavalos e carroças que se atreviam a adentrar o vilarejo sem pedir licença e aos poucos foram surgindo como caravana no deserto. Pessoas começaram a sair de seus casebres, a debruçarem-se nas pequenas janelas, a abancarem-se nos portões e portas. Todos curiosos, apreensivos. Eram carroças coloridas amontoadas por pessoas coloridas. Cavalos de crinas longas e arreios brilhantes. Homens e mulheres diferentes, coloridos. Pareciam saídos dos livros de aventura, dos poucos livros de aventura lidos por Laura. Sim, como romântica incorrigível, aprendera a ler com a vizinha as primeiras letras e, depois, foi só uma questão de tempo para devorar os romances que dona Vânia a emprestava. Mas logo os romances ficaram escassos e ela partiu para os livros de aventura escondidos num embornal encardido, que levava sempre consigo como um tesouro. Lia sempre no horário do almoço, quando então podia descansar da labuta e sonhar. 

Os homens, mulheres, cavalos e carroças se puseram na pracinha em frente à pequena Capela de Santa Matilde e logo foram cercados pelas crianças e moradores daquele lugarzinho perdido no tempo e no espaço. 

Com movimentos rápidos e muito tumulto foram logo abrindo uma tenda em verde, azul, amarelo e vermelho. De repente, o céu azul tomou uma coloração mais acinzentada, anunciando a chegada de uma chuva torrencial. Porém, aquelas criaturas não se intimidaram e continuaram suas tarefas, gritando uns com os outros, ordenando, rindo numa embolada desconcertante para aqueles habitantes tão acostumados com o silêncio do lugar. 

Laura, tão logo terminou de lavar as roupas, estendê-las, pôs-se na praça a fazer perguntas a um jovem alto, robusto e de cavanhaque. Tratava-se de um circo. Na verdade, um pequeno circo, porém enorme para aquele lugar. Laura encantou-se. Viu surgir na sua frente toda espécie de cores e de gentes. Eram sim, personagens saídos de suas fantasias. Mal podia esperar para ver o grande espetáculo do CircusVolanti. Voltou para casa depressa, para concluir suas tarefas do dia e pediu suplicante que sua mãe a deixasse ver o espetáculo. Os artistas resolveram pernoitar, seria apenas uma apresentação, de graça, para aquela comunidade esquecida e amarelada. 

Apesar das nuvens que prometiam uma tempestade, a tenda pôs-se de pé e podiam-se ouvir os preparativos para o grande e inesquecível espetáculo. Em pouco tempo, as nuvens se dissiparam, o sol voltou escaldante e foi sumindo aos poucos no horizonte dando espaço para que a escuridão da noite se fizesse presente. Os geradores de energia foram ligados e faziam um barulho tremendo. E a cada movimentação por debaixo das lonas era motivo para a curiosidade de todos que, neste momento, já estavam em fila e prontos para adentrar a arena. 

Nem noticiário, nem novela. Aquela noite a história seria contada ao vivo e em cores. Quando o mestre de cerimônia mandou que abrissem as cortinas, as pessoas do vilarejo se acotovelaram, empurraram umas as outras buscando um espaço sob a lona. Alguns, mais velhos, preferiram ficar em casa, talvez por medo do desconhecido, talvez por hábito mesmo. Mas Laura estava lá, na primeira fila, ansiosa, coração batendo cada vez mais forte, arrepiando-se e aguardando os encantos que viriam desfilar na sua frente. 

Palhaços, anões e mulher barbada fizeram a alegria de todos. Trapezistas e contorcionistas deixaram estupefatos até àqueles que se achavam sabedores das coisas. E Laura em catarse, até que adentrou em um cavalo branco o homem do cavanhaque e desfilou fazendo acrobacias em cima do quadrúpede. Estendeu à mão a Laura e num relance transformou-a em uma artista, mesmo que por uns poucos instantes, cavalgando em círculos e dando a ela as rédeas daquele belo animal. Depois, deixou-a só, num canto e terminou sua apresentação. 

Naquela noite, estrelas pipocavam diante dos olhos de Laura. Dormir? Como? Não conseguia esquecer-se do cavaleiro, de seu olhar entorpecedor, de sua voz a lhe dizer: “pegue as rédeas, o mundo é seu…”. Fechou os olhos por uns instantes e, decidida, levantou-se, pegou seu embornal, colocou-se em trajes de festa e ficou na espreita por uma fresta na janela de seu quarto. As pálpebras começaram a pesar e, aos poucos, Laura adormeceu assentada em um banquinho de vime diante da janela. Mal amanheceu o dia, os circenses foram desfazendo os sonhos semeados naquela noite inesquecível. Rapidamente as lonas foram guardadas em carroças, cada um foi se ajeitando como podia e a caravana se colocou novamente na estrada. 

Quando o sol já se fazia alto, Laura acordou, correu até a praça e viu-se sozinha. Sem lona, sem cavaleiro, perdida na poeira amarelada deixada pelo circo. Caminhou alguns quilômetros e deteve-se. Sabia que era impossível alcançá-los. Choramingou, arrancou de dentro do embornal o livro que carregava e o esmigalhou como se esmigalha um sonho perdido. Voltou lentamente para o vilarejo ainda ouvindo as gargalhadas, o trotar dos cavalos, os urros de surpresa e medo do público e a voz do cavaleiro que dizia “pegue as rédeas, o mundo é seu…”. Contentou-se, mais uma vez, com os noticiários do rádio e as novelas que nunca terminavam. Criou para si, um mundo só seu e, aos poucos, se desfez. 


Joseani Adalemar Netto é natural de Santos Dumont, Minas Gerais. Formada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Educação Infantil, Especialista em Educação Contemporânea pelo IF-Sudeste, campus Santos Dumont e Mestre em Letras – ProfLetras UFJF. Leciona Língua Portuguesa e suas Literaturas na Rede Municipal e Particular de Santos Dumont. É membro efetivo da Sociedade Brasileira dos Poetas Adravianistas (SBPA), Coordenadora do Projeto de Leitura LeiturAMA-SD, membro atuante da Ação em Movimentos Artísticos de Santos Dumont (AMA-SD), fundadora e coordenadora da Academia Brasileira de Autores Aldravianistas Infantojuvenil – SD (ABRAAI-SD), membro correspondente da Academia Portuguesa de Ex-Libris (APEL). É contadora de histórias, palestra sobre Educação e Literatura, ministra oficinas e atividades culturais voltadas para o incentivo à leitura e à escrita tanto para estudantes quanto para a formação de professores na cidade de Santos Dumont e região. Tem seus textos publicados em antologias literárias como o Livro IV, V, VI, VII e VIII e IX das Aldravias; Antologia Juiz de Fora ao Luar; Antologia Múltiplas Palavras, UBT (JF), e-book Cronistas da Quarentena (2021), Livro foto-poema pela Lei Aldir Blanc. Possui capítulos em livros pedagógicos voltados para o Letramento Línguistico e Literário, artigos publicados em jornais e revistas voltados para a Educação. Já prefaciou livros e quarta capa para vários outros escritores e poetas. Trabalha como revisora linguística em várias publicações. É colaboradora externa no Projeto Propostas Pedagógicas para o Ensino de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, atuando como co-orientadora dos bolsistas de Letras na construção de sequências didáticas, do IF-Sudeste, campus Juiz de Fora e atua também no projeto de pesquisa Performances do Narrador, UFMG, com o olhar para as obras de Conceição Evaristo. Participa de forma atuante em oficinas, palestras, cursos, saraus e atividades afins. Possui certificados e medalhas de Mérito Cultural por sua atuação como fomentadora da cultura local e da região, oferecidas pela SBPA, Lesma Poesia, Rotaract, Interact, Câmara Municipal de Santos Dumont, dentre outros. 


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