Os quatro blocos do edifício sentiram o baque. Talvez porque o final da história demorasse quase três anos para acontecer, talvez porque a solidão seja mais tocante, talvez porque aquilo que é mantido em segredo excite ainda mais a curiosidade e as especulações. 

Até hoje, ninguém sabe muito sobre sua vida. Morava sozinho, setenta e dois anos, aposentado, recluso, gentil, recebia encomendas pelo correio, e é tudo que se sabia dele. Parece que foi professor, que era solteiro, que lia muito, que adorava música, que tocava violão, que trabalhava de casa, e é tudo que conjecturam sobre ele. Mudara-se para o prédio havia quase trinta anos. Falava apenas o essencial, saía poucas vezes à noite, voltava tarde ou dormia fora, recebia pessoas raramente, a maioria mulheres, e é tudo que se conhece de seus hábitos. Era Seu Eme, provavelmente pela inicial do primeiro nome. 

Nos últimos dez anos, jamais abria janelas e cortinas do apartamento. Nos últimos cinco, não foi mais visto. Ainda recebia suas encomendas, que os porteiros amavelmente deixavam em sua porta, tocando a campainha para avisá-lo. O mesmo para as quentinhas que pedia. Aparentemente, não fazia mais contato com o mundo exterior. Foi por essa época que começaram as indagações. O que estaria acontecendo com Seu Eme? 

A síndica do prédio e os porteiros sempre tiveram bom relacionamento com ele. Conversavam entre si e estavam preocupados. Interfonavam e enviavam mensagens, e não tinham resposta, mas os dois tiques azuis indicavam que eram lidas. As contas estavam em dia. Até que as quentinhas pararam de chegar, e – pela primeira vez – o condomínio não foi pago. Decidiram arrombar a porta. Bateram, gritaram, avisaram que abririam a porta à força e entraram. Determinadas cenas jamais saem da mente, e a que presenciaram foi uma delas: Seu Eme estava sentado no sofá, braços ao lado do corpo, olhos abertos encarando o nada, como em transe. O cheiro de urina e fezes torceu o estômago dos invasores. Chamaram seu nome, acenaram, mas não houve reação. Saíram para decidir o que fazer. 

É interessante como, em algumas situações, as pessoas se unem em torno de um ideal. Pode ser pela situação em si ou pelos indivíduos envolvidos. O mais curioso neste caso é que Seu Eme não era popular, ou melhor, era quase um desconhecido pela grande maioria dos moradores; a maior parte deles sabia vagamente quem ele era. Algumas pessoas o conheciam por cumprimentá-lo, por vê-lo passar ou pela música que saía de seu apartamento. Não se pode falar em carisma, pela quase total falta de contato; nem em renome ou fama, por ser ele, para todos os efeitos, um ilustre desconhecido; nem em bisbilhotice, por não ser alguém que, por qualquer razão, despertasse interesse. Restam poucas possibilidades: pena, compaixão, pesar, ou mera solidariedade. O fato é que uma legião de moradores se uniu para ajudar o velho habitante do 801. Enfim, talvez nem tudo esteja perdido. 

Uma assembleia extraordinária foi convocada, formaram-se grupos, distribuíram-se tarefas. Em todo grande grupo de pessoas sempre se encontram diferentes profissionais. Uma enfermeira se ofereceu para cuidar dele, assessorada por membros de sua equipe no hospital; um médico se ofereceu para o examinar, providenciar medicamentos e conduzir alguns exames, ao fim dos quais não descobriram de que sofria; duas faxineiras se ofereceram para manter o apartamento “entrável”, como definiram; uma mulher que vendia quentinhas dispôs-se a fornecer alimentação; um policial e um advogado incumbiram-se de procurar conhecidos e parentes do idoso. Formou-se um verdadeiro mutirão de auxílio, do tipo que se vê quando há um desastre, natural ou planejado. 

Como em todo agrupamento humano, alguns se opuseram aos cuidados com o velho, sugerindo que fosse internado compulsoriamente, para não trazer “má fama” ao prédio e para não prejudicar o trabalho da síndica e dos porteiros – estava “nas últimas” mesmo. Acabaram vencidos, felizmente. 

Depois de algumas investigações, concluíram que o homem não tinha família. Descobriram, no entanto, que frequentara amiúde um restaurante próximo. Conversando com os garçons, chegaram a um sujeito quase da mesma idade e que o conhecia. Na verdade, foram grandes amigos, mas, por razões obscuras, pararam de se falar. Mário juntou-se ao grupo de voluntários e acompanhou tudo até o fim. Seu Eme não morreu, propriamente; simplesmente, deixou de existir: parou de respirar “do nada”, como um veículo que fica sem gasolina. Sentado no sofá, braços ao lado do corpo, olhos abertos encarando o nada, como em transe, exatamente como quando fora encontrado. Os quatro blocos do edifício sentiram violentamente o impacto de sua morte. O antigo amigo cuidou do enterro e conseguiu autorização judicial para dispor dos bens do falecido. 

Mário ainda não sabe o que fazer com um achado surpreendente: milhares – literalmente – de folhas manuscritas em caneta azul, com poemas e mais poemas. Por não ser sua área, mostrou os poemas a alguns especialistas que conhece dos tempos de universidade, e parece que possui um tesouro literário em mãos. Seu Eme datava tudo que escrevia; aquelas folhas contêm a obra de uma vida, possivelmente desde os vinte anos de idade. São versos reflexivos que destilam tristeza, frustração e amargura, recheados de crítica social e política, além de profundo conhecimento de diversos assuntos e sofisticada habilidade literária. Pelas datas, escreveu até um dia antes de ser encontrado. Por que nunca publicou seus poemas? O que representam pessoas, fatos e locais mencionados em alguns deles? O que o fez esconder suas qualidades de escritor? 

São perguntas que Mário espera responder. Desde a morte de Seu Eme, os dias passam tristes e pesados enquanto disseca a obra do amigo e relembra com muita saudade e dor profunda tudo que passaram juntos. Tornou-se verdadeiro estudioso da obra do amigo, talvez como resgate de tudo que viveram juntos. Sabe que a tarefa o está deixando igualmente recluso, mas espera não acabar da mesma forma, não antes de prestar esta última homenagem a ele. Percebeu que vem anotando tudo em folhas de papel com uma caneta azul. A coincidência o fez sorrir. 


José Manuel da Silva é professor universitário, revisor e tradutor, 65 anos, nasceu e mora no Rio de Janeiro, RJ. Possui obras publicadas em antologias de contos e poemas. Membro de algumas associações literárias. Publicou o e-book Microcontos da Pandemia pela Amazon . Amante das letras, da música e das histórias em quadrinhos. @josemsilvaprof


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