Arte primitiva e a hierarquização no sistema das artes modernas – O Primitivismo Como Necessidade do Moderno 

Este estudo tem como objetivo investigar as práticas hierarquizantes no sistema das artes surgidas na modernidade com base na noção de “arte primitiva” enquanto necessidade de formação e estruturação de um modelo eurocêntrico, colonialista e opressivo a partir de sua nomenclatura. Sob o esclarecimento das formulações sociológicas da arte de Piérre Bourdieu e o olhar antropológico de Ilana Goldstein, o presente artigo fomenta provocações no que diz respeito à cultura material e às artes de povos tradicionais do continente africano, bem como sua descontextualização, a cristalização de um imaginário ocidental sobre arte moderna e a necessidade do “primitivo” para o surgimento do moderno no século XX. 

Palavras-chave: arte moderna; arte africana; arte primitiva; sociologia da arte; antropologia da arte. 

1. Arte “Primitiva”: vamos ao museu?  

O “primitivismo” é um daqueles temas que possuem um debate complexo e caloroso a seu respeito. O modernismo, por sua vez, também. E não é para menos, dado o fato de que ambos são frutos de um período histórico marcado pelo sanguinolento projeto neocolonialista que violentou e ceifou a vida de incontáveis pessoas. A dita arte “primitiva” e a arte moderna, cada qual a sua maneira, nunca se esgotam no que tange a produção crítica e teórica, ao menos não facilmente. Portanto, não tenho como pretensão o esgotamento de tais discussões e sim propor uma leitura que interprete ambos dentro da chave de entendimento do que de fato foi o projeto modernista e sua necessidade de se provar moderno.  

A dificuldade gira em torno de discussões intrínsecas à compreensão desses termos e é justamente aí que se percebe o peso que as nomenclaturas carregam e como são capazes de atuar como “justificativas” da barbárie colonial. A teoria evolucionista de Charles Darwin, paradigma da segunda metade do século XIX, provocou alarde na Europa, causando um frenesi de ideias e argumentações científicas que consequentemente se tornaram peça chave para validar o conceito de raça, decretando assim, a superioridade europeia enquanto raça mais evoluída em comparação às civilizações não ocidentais. Uma vez que a escravidão havia se tornado uma prática ilegal e a Revolução Industrial aumentado a demanda de mão de obra, a Europa encontra nas teorias de Darwin a perfeita justificativa para invadir, saquear e dizimar povos e culturas não ocidentais, sobretudo africanas, no que entrou para história como Partilha da África.  

Neste contexto, em meados do século XX, surgem as chamadas Exposições Universais, um acúmulo de artefatos trazidos pelos navegantes e que eram expostos como algo exótico, oculto e mágico. Como nos mostra a antropóloga Ilana Goldstein (2008, p. 287) o principal objetivo dessas exposições era enfatizar a condição desses povos enquanto sujeitos menos evoluídos, bárbaros e assim fundamentar a empreitada colonial e a invasão europeia desses países. O museu Trocadéro foi um importante difusor dessas ideias, posto que em sua expografia não demonstrava nenhuma preocupação em catalogar e contextualizar essas peças, fazendo daquele acúmulo de objetos uma verdadeira “desordem” visual, contrária a ideia de ordem e rigor científico defendidos pelos cientistas e pensadores do positivismo. A este respeito, encontramos nas palavras do pedagogo Luiz Rufino o seguinte esclarecimento: “A elaboração de regimes de verdades por parte do cânone moderno ocidental reduz a complexidade do mundo e opera produzindo o desencante de outros saberes, logo os transformando em modos subalternos.” (RUFINO, 2019, p. 46) 

A expedição Dakar-Djibouti (1931-1933) possuía como principal objetivo o alargamento das coleções francesas pautadas no pretexto de uma necessidade de pesquisa de campo. Nela, foi coletada uma soma assombrosa de mais de 3,6 mil objetos, 3 mil fotografias, 200 registros sonoros e 300 manuscritos, sendo todos enviados ao Trocadéro (Degli; Mauzé, 2006, p. 91 apud. Goldstein, 2008, p. 283). Logo após a chegada desses itens, surge então o Musée de l’Homme, em 1935, com o propósito de celebrar a humanidade e potencializar este formato de coleção. Ambos os museus, no entanto, são fechados para dar lugar a um espaço mais “moderno” e atrativo, o Musée Quai Branly, inaugurado em 1999 e que hoje integra as coleções de ambos seus antecessores, o Trocadéro e o Musée de l’Homme.  

Nesse sentido, constrói-se uma noção cristalizada do que de fato era a arte africana com base nessas exposições que potencializam um olhar eurocêntrico para com esses objetos, colocando-os sob o termo arte “primitiva”, o que nos leva a pelo menos dois questionamentos fundamentais: como abordar sociologicamente essa hierarquização no sistema das artes na modernidade? Por que até hoje as vanguardas europeias são lidas como categorias imperativas dentro do modernismo? 

Este ensaio se apoia principalmente nas formulações do sociólogo Pierre Bourdieu e da antropóloga Ilana Goldstein (entre outros autores) numa tentativa de elucidar a problemática em torno da valorização da arte moderna européia como excelência e medida referencial no ocidente, repensando a exibição desses objetos no espaço museológico e refutando a conotação negativa que foi atribuída a essas verdadeiras obras de arte africanas. 

2. A manutenção do moderno e do primitivo: um olhar sociológico via antropologia da arte 

Talvez os desdobramentos do colonialismo tenham despertado (ou anestesiado) nossa percepção daquilo que é moderno ou do imaginário acerca do moderno. Segundo Rasheed Araeen (2005), é preciso compreender o modernismo como este corpo de ideias que representam um pensamento filosófico etnocêntrico sustentado por uma narrativa que se dá a partir de determinados movimentos e seus mais relevantes representantes. Os museus etnográficos, por esse ângulo, tiveram um papel fundamental na tentativa de sustentar a ideia de arte “primitiva” a fim de diminuí-las e elencá-las como as artes que vieram primeiro, antes do estado “moderno” de evolução que os europeus haviam atingido. Isto posto, percebemos como pensar o moderno só foi possível a partir desse contato com a arte produzida pelos povos tradicionais de África.  A este respeito, encontramos concordância nas palavras de Rufino (2019, p. 75) ao explicar que “[…] ao longo de mais de cinco séculos, se molda na forja da empresa colonial uma educação que atende às demandas desse regime de ser/saber/poder.” 

Para a antropóloga Els Lagrou (2008, p. 220) deve-se levar em consideração ao menos três problemas cruciais para a antropologia dos objetos e da arte, sendo respectivamente a relação entre objetos e pessoas, a relação entre ética, estética e política e a capacidade dos objetos de serem agentes ativos sobre as pessoas numa rede de intencionalidades. Esses esclarecimentos norteiam pontos essenciais para uma abordagem crítica, antropológica e sobretudo “sensível”, todavia contundente, nas argumentações a seguir. 

De acordo com Goldstein (2008, p. 309) alguns fatores nos levam a pensar o motivo pelo qual essas produções frequentemente recebem nome de “primitivas”, sendo estes a posição marginal de seus produtores, seja em relação à normalidade psíquica (arte bruta), seja em relação ao conhecimento científico e acadêmico (naif ou popular), em relação a um menor grau evolutivo (pré-histórica) ou supremacia econômica e tecnológica (arte indígena) podendo enquadrar aqui a arte africana segundo os olhos do Ocidente. Para a autora, um outro critério etnocêntrico de avaliação é a associação entre processos de criação e os impulsos humanos mais instintivos, no quais é possível observar uma predominância do inconsciente em oposição ao consciente, presentes nos estágios arcaicos da humanidade. A este respeito, é possível afirmar que o surrealismo, notável movimento modernista, tinha como característica predominante o que Hal Foster (1996, p. 175 apud Lagrou, 2008, p. 224) chamou de “fantasia primitiva”, descrita como a fantasia “de que o outro, normalmente considerado de cor, tem um acesso especial a processos psíquicos e sociais primários aos quais o sujeito branco teria o acesso bloqueado.” 

A proposição de que o termo primitivo pode ser associado à posição marginal fornece a possibilidade de explorar a hierarquização dessas modalidades estéticas sob a luz das formulações teóricas de Piérre Bourdieu acerca da sociologia da cultura e da arte. De forma sucinta, ao menos, se faz necessário compreender o conceito de capital cultural em Bourdieu, que como exemplifica Goldstein (2010), “trata-se de uma riqueza simbólica desigualmente distribuída dentro de cada campo”, e que pode vir à tona a partir de três formas, sendo elas o habitus cultural (fruto da socialização prolongada), forma objetivada (livros, quadros, discos e demais bens culturais) e forma institucionalizada (contida nos títulos escolares e vinculados ao mercado de trabalho).  

Em L’amour de l’art (Bourdieu, 1969 apud Goldstein, 2010), o sociólogo confirma que a socialização é fundamental para despertar o amor pela arte. Dez anos mais tarde, em La distinction (Bourdieu, 1979 apud Goldstein, 2010) Bourdieu, a partir desse novo conceito chamado habitus alerta para os perigos do acúmulo de capital cultural, principalmente de maneira imperativa como se é percebido na produção europeia. Para o autor, essa divisão na sociedade pode acabar elencando os “bárbaros” (ou “primitivos”) – aqueles que são incapazes de estabelecer um eixo relacional estético frente ao objeto de arte – dos “civilizados” (ou europeus) – aqueles que detém capital cultural e que, logo, são capazes de se entregar aos deleites estéticos frente ao objeto de arte. 

 Portanto, podemos retomar os questionamentos iniciais e correlacionar as afirmações de Bourdieu sobre as três formas de capital cultural, sobretudo a forma institucionalizada, com o papel que o espaço museológico desempenha na sociedade, fazendo com que museus como o Trocadéro, o Musée de l’Homme e atualmente o Quai Branly fossem essenciais na disseminação da noção de arte moderna europeia como excelência e medida referencial, colocando à margem aquilo que era fruto das civilizações não ocidentais, sobretudo a arte africana. É justamente o que Alfred Gell (2001, p. 175) ao questionar o que define uma obra de arte, aponta, dentre outras duas instâncias, a teoria institucional, o que acaba por conferir a um consenso de artistas, críticos e marchands a autoridade de considerar algo uma obra de arte ou não.  

Segundo Els Lagrou (2008, p. 221) o que se celebra nesses espaços são as relíquias de um mundo desaparecido e estando ausente desses diálogos, “O homem do Ocidente vem ver, mas nunca é exposto.”  

3. Considerações finais 

Nessa lógica, percebemos a necessidade da Europa – e seu êxito – em criar uma conotação negativa que defendesse seu status moderno e que se estende até os dias atuais, tornando imprescindível que lancemos um olhar decolonial no que toca este discurso eurocêntrico, mas que, como exemplifica Araeen (2005), não devemos condená-las apenas como eurocêntricas e sim libertá-las das garras do colonialismo e seus malefícios que se desdobram na contemporaneidade.   

Em defesa da antropologia da arte, ao precaver sobre armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas, Alfred Gell (2001, p. 190) alega que deveria se enquadrar como arte tudo aquilo que recompensa potencialmente o exercício de se debruçar sobre o objeto em questão, pois em sua complexidade, exige um olhar atencioso e cauteloso. Para o autor, se faz necessária a existência de um conteúdo que desenvolva uma noção e dissemine conteúdo informativo dentro das galerias e espaços museológicos. A antropologia da arte, segundo Gell, deveria fornecer um contexto crítico. 

Por esta senda, podemos concluir que os arte-educadores e críticos de arte desempenham papel vital no que corresponde à elucidação de problemáticas que giram em torno do termo “arte primitiva”, ressignificando desígnios, promovendo o debate crítico e desconstruindo olhares eurocêntricos com o intuito de aguçar as percepções do espectador dentro do eixo relacional obra/público. No dizer de Rufino (2019, p. 124), “Assim, uma virada epistemológica que seja antirracista e mire a descolonização haverá de ser, necessariamente, uma virada linguística, uma ação poética/política.” 

Referências Bibliográficas 

ARAEEN, Rasheed. Modernidade, Modernismo e o Lugar da África na História da Arte da Nossa Época. Tradução do original publicado em Third Text, 19(4): 7, 2005, 411-441. Taylor & Francis Ltd. 

GELL, Alfred. A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, Rio de Janeiro, 2001. 

GOLDSTEIN, Ilana. Hierarquias da Cultura. Revista Cult, 2010. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/hierarquias-da-cultura/>  

GOLDSTEIN, Ilana. Reflexões Sobre a Arte “Primitiva”: O Caso do Musée Branly. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 279-314, jan./jun. 2008. 

GOLDSTEIN, Ilana. Arte, artesanato e arte popular: fronteiras movediças. In: HIKIJI, Rose Satiko Gitirana; SILVA, Adriana de Oliveira. Bixiga em artes e ofícios. São Paulo: Edusp, 2014. 

LAGROU, Els. A Arte do Outro no Surrealismo e Hoje. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 217-230, jan./jun. 2008. 

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019. 


Lucas Rocha É artista visual e arte-educador, pós-graduado em História da Arte: teoria e crítica pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, pós-graduado em Docência em Literatura e Humanidades pelas Faculdades Metropolitanas Unidas e graduado em Artes Visuais pela Universidade Cruzeiro do Sul. Possui como principais linhas de pesquisa crítica de arte, história da arte, estudos culturais e antropologia da arte, possuindo diversos textos publicados nos segmentos mencionados. 


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