O Cinema Negro possui uma obra que se tornou um grande referencial, trata-se do filme “Alma no Olho” (1974) de Zózimo Bulbul. O curta-metragem tem inspiração em Frantz Fanon e John Coltrane. Há ali uma espécie de analogia que remonta a escravidão. Os cortes e recortes em partes específicas do artista soam como os anúncios que eram feitos pelos senhores que comercializavam escravos. Um jogo de imagens com uma vertente concretista? Pode ser, mas sobretudo, um cinema inventivo.
Cada detalhe do corpo do artista parece a soma de uma fragmentação visual, os cortes se recortam e atraem-se a uma única visão. Uma linha de costura desliza diante de mim enquanto mergulho nesses quadros recortados. Tento me salvar da armadilha da deseducação visual, cambaleando numa vertigem que começa quando volto do mergulho. Mergulhei tão profundamente que pensei ser eu ali. Levanto a cabeça, a inclino para cima e vejo um resplendor azul e branco de um encantado. Dou dois passos para a frente, porque conheço o instaurador de portais, fazia tempo que esperava revelo. Eu preciso desses encontros para torná-los repertório de meu corpo.
A nossa aliança é eterna e imensurável,
é também interplanetária.
Deixar-se despido diante do olho da lente que prende e expande. Algo como estar deitado numa caixa cheia de câmeras e lançar-se às imagens infinitas de um corpo viril.
Corpo de um negro portal.
A alma está no olho de quem está vendo e de quem está performando. Há um entrelace carnal do amor à invenção. Performar para fugir da morte, mesmo que não se tenha medo dela.
Há algumas décadas desisti de morrer. Morrer para novas decepções e dores? Talvez faça mais sentido. Morrer nas imagens, perceber sua morte no fim de sua feitura e ressuscitá-la a cada nova olhada que dou nos fins de tarde.
Imagens sem lembrança
Memória das visualidades
Implacável poder de (re)invenção
Uma velhice fervorosa, sem futuro e com presente
O passado da atuação negra habita hoje, sinto-me instrumento em tuas mãos. Sou como um vaso oco, sem fundo que se enche a cada vez que ofereço minha alma (meu corpo) a cada olho (vocês receptores).
Uma honra
Um prazer
Bulbul
O visionário
Almas inexistentes em olhos sem visões. Ver é sobretudo imaginar. Quando crio imagens, as capto e início uma série de inquietações. Desperto um pesadelo inoportuno: “Será se dou conta?” Não dou, não darei e nem você vai dar. Resta-nos procurar: hoje, hoje, amanhã, não vou procurar sentido para enquadrar, apenas deixo o portal se instaurar.
No bico do seu peito
Nos olhos de nossos cus
Nas três bolas do saco do
meu amigo Onicio:
Há alma no olho!
CAMPOS, Elaine Aparecida Rodrigues. ZÓZIMO BULBUL: ALMA NO OLHO EM CENA, A ARTE CINEMATOGRÁFICA DO NEGRO SOBRE O NEGRO. 2020.
Disponível em <http://sites.uem.br/neiab/revista-neiab/artigo-1.pdf>
Augusto Lopes Costa, 1993, Coronel Fabriciano – MG (BRASIL) é artista interlinguagens, pesquisador e professor com exposições nas regiões sudeste e nordeste, participação em festivais de cinema e artes do corpo, assim como residências em artes cênicas e publicações em revistas, congressos e periódicos acadêmicos . Cursou Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design com Licenciatura em Artes Visuais pela UFJF (2014-18), Especialização em Ensino de Artes Visuais pela UFMG (2018-20) e atualmente desenvolve pesquisa no Mestrado em Artes Visuais da UFBA (2021-23). Sua obra possui repertório em objetos, fotoperformance, vídeoperformance, performance ao vivo e em telepresença, literatura e instalações.
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