Por que apenas as mulheres se manifestam? Corinthians feminino, um time que dá voz. 

A quinta rodada do Campeonato Brasileiro – o Brasileirão feminino de futebol – foi marcada por protestos das jogadoras de alguns clubes. O jogo entre Palmeiras e Avaí contou com as jogadoras de ambos os times tapando suas bocas com as mãos, em um sinal que fazia referência a um silenciamento forçado. Isso também foi feito pelas jogadoras do Corinthians, no jogo contra o Santos, até no clássico jogo entre Internacional e Grêmio, as jogadoras destes respectivos clubes aderiram ao mesmo protesto. A manifestação era contra o assédio no futebol, e aconteceu devido denúncias de assédio contra o técnico do time feminino do Santos, presentes em 19 cartas revelando assédio moral e sexual por parte do técnico, inclusive, o número (19) foi referenciado no protesto do jogo entre Palmeiras e Avaí, onde na foto oficial, com as bocas tapadas, as jogadoras de cada time que levavam o número 19 nas camisas ficaram no centro da foto, viradas de costas, com o número em evidência. No protesto do jogo entre Internacional e Grêmio, uma camisa com o número 19 também foi segurada ao centro, e no do Corinthians – que apesar de jogar contra o Santos naquele jogo, aderiu à defesa das jogadoras santistas – foi levantada nas redes sociais, a #RespeitaAsSereias, em referência à #RespeitaAsMinas do Corinthians, e ao apelido de sereias das jogadoras santistas. 

O caso foi fortemente repercutido na mídia esportiva ganhando até mesmo matérias no Globo Esporte, especialmente nas redes sociais onde os torcedores de futebol costumam interagir bastante. Esse tipo de manifestação não é um caso isolado quando se trata do time do Corinthians feminino, as jogadoras corinthianas são conhecidas por um forte caráter politizado, e por protagonizarem diversas manifestações ao longo dos anos, são inúmeras as manifestações contra o racismo no futebol, contando com comemorações de gols erguendo o punho esquerdo – uma referência ao sinal de resistência dos Panteras Negras -, bem como críticas e cobranças sobre os casos de racismo na libertadores, protestos a favor da comunidade LGBTQIAP+, e levando a bandeira de arco-íris para a foto oficial em campo. Entretanto, uma das manifestações de maior alcance das jogadoras do Corinthians feminino, foi no ano passado (2023), mediante o caso Cuca. O Corinthians masculino havia contratado o técnico Cuca para trabalhar no time, porém, Cuca enfrentou dificuldades de aceitação por parte da torcida corinthiana, que sendo uma torcida historicamente politizada, não aceitava a presença de um técnico com uma condenação por estupro em sua história. Para além da pressão dos torcedores, as jogadoras do time feminino se manifestaram contrárias à presença do técnico no Corinthians, utilizaram de suas redes sociais para postar um stories no Instagram com um comunicado oficial, que dizia: 

“Estar em um clube democrático significa que podemos usar a nossa voz, por vezes de forma pública, por vezes nos bastidores. “Respeita As Minas” não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso compartilhado. Ser Corinthians, significa viver e lutar por direitos todos os dias.” 

As pressões e manifestações da torcida corinthiana, e o apoio das jogadoras do time feminino, fizeram com que Cuca optasse por se demitir do clube. Essas ações do time feminino do Corinthians já são tão constantes e comuns, que virou parte do caráter e uma marca delas. É interessante observar como essas atitudes são marcadas por uma persona identitária profundamente corinthiana, isto é, ligada à identidade clubística do Corinthians, de forma que o time feminino, parece não apenas ter absorvido, mas representar bem a identidade clubística do Corinthians. 

A identidade clubística corinthiana é historicamente marcada por ser politizada. O clube nasce com a reunião de cinco operários paulistas com o objetivo de representar os trabalhadores urbanos da cidade de São Paulo, oferecendo um espaço de ação e manifestação para estes que não conseguiam ter esse espaço na política geral. O Corinthians mais tarde também se tornou um clube associado à democracia, especialmente no contexto da reabertura democrática no Brasil, onde o clube viveu a Democracia Corinthiana, um movimento democrático e com jogadores fortemente politizados – inclusive envolvidos na política nacional, como nas Diretas Já! -, e que até hoje é resgatada como ferramenta de orgulho e manutenção dessa memória identitária tão politizada. Atualmente, o Corinthians ainda busca afirmar essa identidade com um departamento cultural interno que resgata sua história, sempre se alinhando aos interesses das classes mais baixas e dos trabalhadores – suas personas identitárias originais -, ou mesmo com a criação da #RespeitaAsMinas, que mais do que uma # para ser utilizada nas redes sociais, é um projeto e campanha do clube pelo respeito e valorização das mulheres. 

A equipe feminina do clube nasceu em 1997, mas foi desativada por alguns anos e restabelecida em 2016, quando voltou e foi tomando cada vez mais força. O futebol feminino sofreu e ainda sofre com muito preconceito e boicote, o esporte que já foi até proibido por lei de ser praticado por mulheres, ainda é associado apenas aos homens, de modo que os clubes em geral, não costumam ter times femininos ou então, não costumam investir em seus times femininos. Clubes milionários, mas que por vezes deixam suas jogadoras treinando em campos com gramados deteriorados, sem uniformes de qualidade, e sem oferecer estrutura em geral para as atletas. O Corinthians fez diferente. Quando o time feminino foi reativado, o clube passou a investir nele, proporcionando às atletas as condições necessárias para o desenvolvimento de seu trabalho. Isso fez com que o time feminino do Corinthians se tornasse muito forte e bem treinado, atingindo um nível técnico superior nas competições, e se tornando o grande campeão de todas as principais competições. O Corinthians feminino ganhou o Campeonato Paulista em 2019, 2020, 2021 e 2023; a Copa Paulista em 2022; o Campeonato Brasileiro em 2018, 2020, 2021, 2022 e 2023; a Supercopa do Brasil em 2022, 2023 e 2024; a Copa do Brasil em 2016; a Copa Libertadores da América em 2017, 2019, 2021 e 2023; e ficou em 3º lugar no Ranking Mundial de Clubes da Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol em 2023. Esse cenário fez com que a competitividade contra o Corinthians feminino fosse quase nula, por isso, em nome da manutenção da rivalidade e da competitividade natural do futebol, nos últimos anos, diversos clubes passaram a investir mais em seus times femininos para que eles pudessem competir contra o Corinthians feminino de forma mais justa. 

O time feminino do Corinthians se tornou então uma referência e uma influência. Precisou que pela superespecialização do time corinthiano, os outros times passassem a valorizar suas jogadoras. Nesse sentido, o Corinthians feminino se tornou mais do que uma voz representativa para os torcedores corinthianos – ainda que isso também, afinal, o clube incorpora a identidade clubística de forma ainda mais prática -, mas também uma voz representativa para os demais times femininos, dos demais clubes. Estamos assistindo esse processo acontecer e se desenvolver no tempo presente. As manifestações contra o técnico assediador, inicialmente citadas, são uma evidência disso. O que antes só era visto através do time feminino do Corinthians, agora conta com a presença de mais jogadoras que podem se sentir encorajadas a ocupar esse espaço e utilizar o futebol como uma ferramenta discursiva. 

Finalizo com um questionamento perturbador. As jogadoras do Corinthians sempre se manifestam publicamente, aderindo à identidade clubística e apoiando a torcida, mas ele não é visto pelos jogadores do time masculino, que apesar de obterem mais prestígio e visibilidade, optam pelo silêncio, ou até mesmo um apoio inconveniente, como aconteceu no caso Cuca. A ação das jogadoras corinthianas agora inspira jogadoras de outros clubes, de modo que o técnico do Santos, decidiu se demitir depois das manifestações contra ele. O questionamento que faço é: por que, mesmo com menos recursos e visibilidade, apenas as mulheres se manifestam?  

Referências 

FABIANI, Luis. Acusado de assédio por jogadoras, técnico pede para ser afastado do Santos. CNN ESPORTES. 15 abr. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/acusado-de-assedio-por-jogadoras-tecnico-pede-para-ser-afastado-do-santos/ 

FISCHBOM, Esther. Jogadoras da dupla Gre-Nal protestam contra o ex-técnico do Santos antes do clássico; veja vídeo. Globo Esporte. 15 abr. 2024. Disponível em: https://ge.globo.com/rs/futebol/futebol-feminino/brasileiro-feminino/noticia/2024/04/15/jogadoras-da-dupla-gre-nal-protestam-contra-ex-tecnico-do-santos-antes-do-classico-veja-video.ghtml 

ITATIAIA. Jogadoras do Corinthians protestam contra Cuca: “Respeita as minas não é frase qualquer”. CNN ESPORTES. 23 abr. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/jogadoras-do-corinthians-protestam-contra-cuca-respeita-as-minas-nao-e-frase-qualquer/ 

REDAÇÃO DO GE. Rodada do Brasileiro Feminino tem protesto contra técnico do Santos por denúncias de assédio. Globo Esporte. 12 abr. 2024. Disponível em: https://ge.globo.com/sp/campinas-e-regiao/futebol/futebol-feminino/brasileiro-feminino/noticia/2024/04/12/rodada-do-brasileiro-feminino-tem-protesto-contra-tecnico-do-santos-por-denuncias-de-assedio.ghtml 

SOARES, Pâmela Camargo. SPORT CLUB CORINTHIANS PAULISTA: IDENTIDADE E POLITIZAÇÃO DE UM CLUBE DE FUTEBOL. v. 26 (2023): Dossiê História do Esporte: interfaces sociais, políticas e culturais. 04 abr. 2024.  


Pâmela Camargo Soares

é graduada em história pela Universidade Federal do Espírito Santo, e mestranda em história pela mesma Universidade. Capixaba de família paulista, a paixão por futebol e pelo Corinthians se uniu aos estudos acadêmicos, e hoje a autora se especializa em estudar as relações entre futebol, história, sociedade, política e identidades.


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