Existem informações que nós, feministas, estamos cansadas de saber. Sabemos que o Brasil ocupa, há muitos anos, a posição de 4º país no mundo com maior número de casamentos infantis (ou seja, homens adultos se casando com meninas). Sabemos que a violência sexual é a forma de violência predominante contra meninas de 10 a 14 anos e que a maioria estrondosa dos violentadores são homens. Sabemos que o Brasil ocupa o 2º lugar no ranking mundial em exploração sexual infantil, que em 2023 registrou-se o maior montante de denúncias deste tipo de violência ocorrendo na internet e sabemos que, novamente, a maioria dos agressores são homens e a maioria das vítimas são meninas. Os números sobre violência sexual e doméstica não são muito melhores quando estamos falando de mulheres adultas. E claro, sabemos que, em uma estrutura capitalista e racista, a subjugação racial e econômica transforma meninas e mulheres pretas e/ou com condições financeiras precárias, em alvos ainda mais fáceis para a predação sexual masculina.
Não digo que estamos cansadas de saber apenas porque a maioria de nós tem esses dados e essas vivências na ponta da língua, mas porque carregar, sozinhas, essa memória coletiva visceralmente entranhada é uma condição de existência exaustiva. O fardo não é suportado só por nós pois tratam-se de estatísticas e fatos escondidos, de algo que apenas nós sabemos. Para a classe masculina hegemônica, independentemente de partido político, essas informações também não são novas, mas significam poder: são o retrato de que a máquina patriarcal segue funcionando a todo vapor.
Se, como Susan Brownmiller colocou, o estupro é um processo social consciente de intimidação onde todos os homens mantém todas as mulheres em um estado de medo, podemos falar o mesmo de uma gravidez indesejada. Isto é especialmente verídico em um país onde 7 a cada 10 mulheres são mães; onde a cada 5 bebês nascidos, 1 foi gestado por uma menina com idade entre 10 e 19 anos; e onde uma menina com idade até 14 anos se torna mãe a cada 20 minutos.
A guerra contra meninas e mulheres acontece de forma entrelaçada. Existem os atos práticos que limitam as possibilidades de vida, como a não garantia dos direitos reprodutivos, e existe também uma ideologia que se impõem no campo do discurso. Se Foucault falou que não existe saber sem poder, Marx falou que um componente imprescindível da dominação é a promulgação das ideias da classe dominante como se fossem ideias universais, ideias que beneficiam a todos, quando na verdade apenas reforçam o poder dos dominadores. Marx falava de capitalistas, mas as feministas sabem que existem classes para além das econômicas, ou melhor, que as classes sexuais são, também, econômicas. E esta é uma das funções secundárias do PL 1904/2024, que classifica como homicida uma vítima de estupro que aborta após a 22ª semana, com direito a uma pena maior que a destinada aos estupradores. A porcentagem de abortos legais realizados nesse período gestacional é baixa, cerca de 5%, e quem necessita são majoritariamente menininhas com quem toda a estrutura familiar, escolar, de saúde e assistência falhou. Além de todas as consequências concretas, o PL 1904/2024 solidifica, na aliança entre patriarcado e legislação, um intertexto. Que mensagem está sendo passada?
Vejamos, no início deste ano, aqui no país do futebol, o jogador mais reconhecido do Brasil e um dos mais famosos do mundo apoiou financeiramente um provável estuprador, também jogador. Seu brother. Ainda que a mídia tenha feito alguns comentários, motivada pelos protestos das mulheres, não houve grandes repercussões. A carreira deste braço amigo não foi afetada, nem houve perda significativa de adoração do seu público, composto em grande parte por, isso mesmo, você adivinhou, homens! Já uma menina de 10 anos no ES, repetidamente estuprada dentro da família, teve que ser enfiada no porta-malas de um carro para conseguir entrar em um centro de saúde e interromper uma gestação. Uma aglomeração de pessoas do lado de fora gritava “assassina!”. Ainda que ilustrativas, essas situações não são anômalas, não são exceções. Também não se trata de hipocrisia. É dialética, diria Marx.
Já Foucault, que pouco seria sem Marx, conceitua discurso como um conjunto de enunciados regidos pela mesma regra. De um lado, temos a normalidade com que acusados de estupro e seus protetores são tratados. De outro, temos a potencial classificação criminal de assassinato por interromper uma gestação originária de violência masculina. Tratam-se de enunciados regidos pela mesma mensagem: o perigo reside nas mulheres. É esse o intertexto que o PL 1904/2024 busca consagrar na legislação, independentemente de qualquer amenização que busque fazer agora com a retranca. Em 2019, o PL 2893 do PSL tentou fazer o mesmo, declarando que a mulher vítima de estupro que opta pelo aborto é mais criminosa que o estuprador pois este lhe poupou a vida. Como são misericordiosos, os homens!
São as mulheres, com seus úteros potencialmente vazios, que são as causadoras de violência. Essas mesmas, que neste país tem, legalmente, menos autonomia corporal que um cadáver. Sim, pois um corpo morto que em vida tenha se recusado a ser doador de órgãos será respeitado, ainda que um único doador possa salvar até 8 pessoas. A periculosidade feminina está inscrita em nossos corpos, enquanto os corpos dos homens são descritos como neutros e, portanto, idôneos. Veja o exemplo de Arthur Lira, presidente da câmara que tentou acelerar o PL 1904/2024. Arthur usou seu corpo para trair a esposa e engravidar a mulher com quem dava suas escapadinhas do sagrado matrimônio. Depois, se recusou a reconhecer a paternidade dessa filha, que possui uma doença e necessita de tratamento especial. Quando questionado, o excelentíssimo exemplar da moral masculina respondeu: “a vida privada de um homem público não interessa”. Já o corpo, tornado público, de meninas e mulheres privadas de uma existência livre de violência interessa, e muito, aos homens. Consciência de classe é algo muito presente em quem está hierarquicamente posicionado acima. Não é à toa que Arthur Lira marca o sujeito da frase: homem.
Então me parece necessário e apenas justo que, na retomada do discurso, nós marquemos também. Eu, já há algum tempo, abandonei expressões que se tornaram higienizadas como, por exemplo, “violência de gênero”. A neutralidade não nos cabe, sabemos a quem ela pertence. Penso, como Heleieth Safiotti, que é necessário marcar o vetor da dominação-exploração. Nomeio então: violência masculina. Aponto para os homens, enquanto classe. E isso envolve apontar também para a esquerda institucional masculinizada, que tem sim tanta responsabilidade quanto os ‘conservadores’. A pauta da legalização da interrupção de gestações indesejadas só segue podendo ser usada como chantagem política porque a própria esquerda não a assume como essencial. O mesmo vale para um combate sério e comprometido contra o estupro e a exploração sexual. Andrea Dworkin, em uma fala brilhante dirigida para uma plateia de homens progressistas, afirmou: “Todas as nossas ações políticas são mentira se não nos comprometemos a abolir a prática do estupro”. Se você nunca leu o manifesto dela pelo fim do estupro, procure o texto. Eu poderia dizer que a atualidade de algo dito décadas atrás é impressionante, mas na verdade é apenas triste.
Ainda que tenhamos diferenças entre nós, que muitas mulheres sejam amaciadas pela esquerda masculina (alou Nísia, alou Cida) ou cooptadas pela direita, eu peço para que lembrem que nossa população não é minoria. E se não há novidade na estratégia de enquadrar mulheres como figuras perigosas e criminosas, talvez o que nos resta seja realmente sermos. Aqui, de novo, trago uma frase em que Marx falava dos detentores do monopólio capitalista, mas podemos pegar para a nossa classe, que em si mesma tem aquilo de mais essencial monopolizado pelos homens: “Se a conquista se constitui como um direito natural por parte de poucos, então a maioria tem apenas que juntar força suficiente para adquirir o direito natural de reconquistar o que lhes foi tirado”. Sejamos perigosas então.
Ana Maria Bercht
Psicóloga Clínica, Mestra em Psicologia Social e Pesquisadora a nível de Doutorado no PPG de Psicologia da PUCRS, investigando as temáticas de objetificação sexual, saúde mental de mulheres, sexismo e aborto. Já atuou no SUS e no SUAS, bem como em cargos de docência.
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