Os usos políticos do gênero pelos grupos das extremas direitas. 

Nos últimos anos, observamos sujeitas como Michelle Bolsonaro, Damares Alves e Carla Zambelli alcançarem destaque em veículos de comunicação nacionais e internacionais. A emergência pública de mulheres pertencentes às novas direitas vem gerando debates em torno do que é ser uma mulher na política. Essas discussões estão longe de serem encerradas e geralmente englobam aspectos sobre as tarefas de reprodução social que associam o sujeito feminino às atividades de cuidado com o lar e o núcleo familiar.  

A dicotomia público-privado é um tema central para a História das Mulheres e de Gênero, historiadoras como Joan Scott e Michelle Perrot já abordaram a questão em seus consagrados trabalhos publicados nas décadas de 1990 e 2000, respectivamente. Da mesma forma que outras áreas dos estudos históricos, a História das Mulheres e de Gênero foi reformulada e ampliada ao longo dos tempos, inserindo categorias como raça e classe em suas análises. Além disso, pautou a importância da não essencialização do ser mulher e de binarismos biologicamente e socialmente construídos. 

Uma das diversas transformações recentemente incorporadas pelo campo de pesquisa é a desconstrução da ideia de que mulheres conservadoras e imersas às culturas políticas das direitas e extremas direitas são exclusivamente submissas e vítimas do patriarcado. Afinal, a premissa é restritiva no que tange às investigações sobre as produções intelectuais, as experiências individuais e coletivas e os projetos políticos dessas agentes. Pois, possibilita que esses grupos sejam analisadas a partir de um único segmento – o de subordinação e obediência.  

As trajetórias de sujeitas históricas como Margaret Thatcher (1925-2013) na Inglaterra, Pilar Primo de Rivera (1907-1991) na Espanha e Lucía Hiriart (1923-2021) no Chile evidenciam que esse imaginário não condiz com a materialidade histórica ocidental. Inúmeros governos de caráter fascista, autoritário e ditatorial usaram do gênero como ferramenta de cooptação e sedução da população feminina em benefício de seu projeto político. E claro, contaram com o auxílio de outras mulheres para fazê-lo. 

As lideranças acima experienciaram momentos históricos em que parcela considerável dos partidários das extremas direitas tinham ciência de que a estrutura capitalista e patriarcal se mantém graças às tarefas de manutenção da vida outorgada às mulheres. Logo, precisavam do seu apoio político para a execução de projetos e programas. Concomitantemente sabiam que a modernidade exigia certa modificação dos papéis historicamente atribuídos aos gêneros, corroborando para que a participação feminina fosse parcialmente aceita em âmbitos públicos das sociedades.  

Outro ponto a ser ressaltado são as reivindicações dos movimentos feministas que exigem mudanças estruturais no que diz respeito à desigualdade de gênero. Eles denunciaram os governos conservadores e mostraram que a categoria em pauta não é abstrata, imutável e desprovida de complexidades. Muito pelo contrário, se insere em um sistema altamente imperialista e colonialista que privilegia o “sujeito universal masculino”, expresso na imagem do homem branco, cis, ocidental, hétero e sem deficiência. Por causa desses fatores, entendemos que os usos políticos do gênero pelas extremas direitas também são uma tentativa de retroceder direitos já conquistados e impedir que novas vitórias feministas se concretizem.    

Um exemplo é a trajetória de Lucía Hiriart, esposa de Augusto Pinochet, general que comandou a ditadura militar chilena (1973-1990). O Estado repressivo instaurado utilizou do gênero como ferramenta de cooptação e sedução da população feminina. Em nome da família tradicional, da moral e da pátria, o governo impôs um programa intitulado “Refundação Nacional” que tinha como base o neoliberalismo, o autoritarismo, o anticomunismo, o masculinismo e o catolicismo. Foi difundido um ideal de mulher mãe, dona de casa e religiosa que deveria defender o país do inimigo interno. Nesse caso, feministas, comunistas, socialistas, LGBT’s e qualquer indivíduo que se manifestasse contra as violações aos direitos humanos cometidas pelos militares. 

Lucía Hiriart foi a grande protagonista desse processo de politização do gênero que operou em conjunto com o anticomunismo e o antifeminismo. Ela foi considerada a mulher mais poderosa da ditadura militar, organizando um “exército pessoal” em decorrência de seu poder econômico, jurídico e institucional. A primeira dama era a presidenta nacional do CEMA – Chile, instituição de caráter privado e assistencialista cujo objetivo consistia em organizar e controlar os “Centros de Mães” existentes em espaços urbanos e rurais dos territórios chilenos. Nesses ambientes, as mulheres eram ensinadas a desenvolver cuidados com a casa e a família através de cursos de formação e outros dispositivos oferecidos pela propaganda autoritária.  

CEMA – Chile publicou uma revista onde Lucía Hiriart era retratada como um modelo de mulher defendido e valorizado pelo Estado. As fotografias e os discursos que envolviam a sujeita a projetavam como uma mulher adepta da feminilidade padrão e preocupada com o bem-estar de seu núcleo familiar. Ela foi concebida como uma liderança que lutava pela construção de uma pátria educadora, organizada e isenta de uma suposta ameaça comunista. Dessa forma, Lucía Hiriart surgiu como uma figura carismática, popular e maternal não apenas para os seus filhos, mas para toda a população chilena. A primeira dama também se beneficiou dos serviços oferecidos pela “Secretaria Nacional da Mulher”, organização inspirada na estrutura política das fascistas partidárias da ditadura de Francisco Franco na Espanha.  

O que a experiência chilena nos ensina sobre os dias atuais? Como mulheres conservadoras imersas nas culturas políticas das novas direitas se relacionam com as personagens históricas anteriormente estudadas? Notamos que essas mulheres são, em grande parte, privilegiadas pela raça e pela classe a que pertencem. A branquitude somada ao espaço que ocupam na esfera pública, lhes outorga certo poder no que tange a participação ativa na construção e implementação dos projetos políticos das extremas direitas. Percebemos que muitas delas se comportam como agentes anti feministas e anticomunistas capazes de promover transformações sociais em nome da ordem, da pátria e da família. 

Outro aspecto a ser destacado é que todas elas estão inseridas em uma estrutura patriarcal e capitalista, onde existe um culto à virilidade e à masculinidade. Vemos como a categoria de “gênero” assume uma dimensão ampla que se relaciona diretamente com a masculinidade exacerbada que homens das extremas direitas almejam performar. As declarações e atitudes de Jair Messias Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos são exemplos disso.  

Observamos que nenhum processo histórico se repete e as condições territoriais e temporais são essenciais para analisá-lo conforme as suas especificidades. É notável que os governos das direitas e extremas direitas da atualidade continuam usando o gênero como ferramenta ideológica. Os aspectos historiográficos levantados comprovam que esse fenômeno não é novo, mas adquiriu contornos de seu espaço-tempo. Além disso, tem dimensões transnacionais como os casos de Chile e Espanha citados anteriormente. Ou seja, estão conectados com outros grupos e sociedades que comungam de ideologias semelhantes e extrapolam fronteiras. Por fim, sublinhamos que muitas das mulheres que atuaram nesses processos escolheram fazê-lo, rompendo com papéis de vítimas obedientes erroneamente lhes atribuídos e complexificando investigações sobre a categoria de “gênero” na pesquisa histórica. 

Referências Bibliográficas 

GAGO, Verónica. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante, 2020. 

MATUS, Alejandra. Doña Lucía. La biografía no autorizada. nov. Ediciones B Chile S.A. 2013. 

POWER, Margaret. La mujer de derecha: el poder femenino y la lucha contra Salvador Allende, 1964-1973. Direção de Bibliotecas, Arquivos e Museus, Santiago, Chile, 2008. 

SEPÚLVEDA, Vanessa. El influjo del falangismo español en Chile: La Secretaría Nacional de la Mujer y la recepción de los modelos y políticas de la Sección Femenina de FET y de las JONS. Historia 396, Valparaíso v. 13, n. 2, jul-dic. 2023, pp. 00-00. 

Site 

CEMA – Chile. Memoria Chilena. Disponível em https://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-95680.html. Acesso em 13 de junho de 2024. 


Iasmin do Prado Gomes 

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Licenciada, Bacharela e Mestra na área pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Nos últimos anos desenvolveu pesquisas que articularam a História Política, a História Intelectual e a História das Mulheres. Atualmente, estuda os usos políticos do gênero no processo de ditadura militar do Chile (1973-1990). 


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