Séculos de luta X 23 segundos

Poderíamos estar falando sobre o melhor caminho e a estratégia para avançarmos na construção de um sistema legal que trate o aborto como questão de saúde pública, valorize a vida das mulheres sujeitas a este sistema e enxergue o abismo de desigualdade que esse tema revela. Poderíamos estar falando sobre como avançar, mas o momento nos exige entender como podemos resistir e lutar contra o retrocesso, a barbárie e a impiedade.  

Para isso, precisamos ter em perspectiva que essa disputa sobre os nossos corpos também é uma disputa de poder, especialmente no Brasil de 2024. Sim, um tema tão caro à sociedade está sendo utilizado na mais baixa estratégia eleitoreira. Estamos em ano de eleições, caros cidadãos, não podemos esquecer! 

É nesse tipo de estratégia que vemos com mais força o desvalor aos direitos das mulheres. Por si só, ousar propor que uma mulher estuprada que interrompa a gestação tenha pena maior que a do estuprador seria aviltante, mas tudo fica pior quando percebemos que fazem isso por motivos eleitoreiros, engajamento e manipulação. Para explicar melhor, vamos ao contexto… 

Estamos em um país que se diz polarizado entre esquerda e direita, quem dera essa fosse a única polarização ou a que realmente importasse na hora do voto. A realidade cotidiana não chega nem perto desses temas. Nas igrejas, universidades, estádios de futebol, no cafezinho do trabalho e nos bares, raramente encontramos pessoas debatendo estratégias econômicas ou de organização do Estado. A polarização do cotidiano está na pauta dos costumes, valores e tradições; para boa parcela da população é isso que importa na hora do voto e muitos o congresso percebe isso muito bem. 

“Meu candidato é contra ou a favor de gays?” “Meu candidato é contra ou a favor do aborto?” Pouco importa se ele defende o fim das leis trabalhistas que asseguram o seguro-desemprego, se ele quer deixar de taxar iates e começar a taxar bicicletas ou se pretende reforçar as estruturas que prejudicam as mulheres. E por aí você já consegue entender quem tem falta de escrúpulos suficiente para se apropriar dessa pauta de costumes para ganhar voto, poder e influência. 

A aprovação, em 23 segundos, do regime de urgência para o PL 1904 serve muito bem para carimbar os políticos neste ano de eleições. Não é por acaso que testemunhamos a voracidade de alguns em defender o Projeto de Lei e o silêncio encurralado de outros tantos. A estratégia foi eficiente, conseguiram carimbar seus oponentes de abortistas e elevar seus algoritmos entre os “defensores da vida”. 

Qual vida? 

Não é a vida das meninas e mulheres estupradas. Não é a vida da mulher pobre. Não é a vida da mulher que já está em sofrimento por estar enfrentar uma gestação de risco para sua própria vida. Não é a vida da mulher que enfrenta a notícia da anencefalia durante a gestação.  

Nosso país já possui uma legislação restritiva em relação ao aborto, permitindo-o apenas em casos de anencefalia, risco de vida para a mulher e estupro. O PL 1904 ameaça agravar essa situação, impondo novas barreiras que dificultam ainda mais o acesso ao aborto seguro e legal e isso representa um grave retrocesso nos direitos reprodutivos das mulheres e viola direitos fundamentais como o direito à saúde, à vida e à dignidade humana.  

E por qual motivo nossos parlamentares gastam tempo debatendo um projeto de lei claramente inconstitucional? Com esses “debates”, eles ganham visibilidade, vídeos, influência, likes, admiradores e conseguem polarizar com “vilões” que eles mesmos criam. Tudo isso facilita o jogo eleitoral, principalmente em uma temática onde a população não tem interesse em aprofundar sua perspectiva e conhecimento, é prato cheio para o controle e manipulação. 

E para isso, a instrumentalização da religião é a ferramenta favorita. A reforma protestante, que entendeu a importância e lutou pela separação da religião e do Estado, é facilmente esquecida ao argumento de que “é necessário proteger os valores tradicionais”. Infelizmente, o resultado dessa estratégia não marginaliza só as mulheres, mas também outras minorias, reforçando uma agenda que impede avanços sociais e democráticos. 

O momento é de resistência, precisamos abrir a roda de conversa para que mais pessoas consigam sentar, falar e serem ouvidas. Só assim vamos conseguir pontes de diálogo e encontrar quem se disponha a entender por outras perspectivas esse assunto. Eu entendo perfeitamente quem não tem mais paciência para isso; já passou tempo demais, já existe conhecimento acessível e abundante, e é difícil entender quem continua bradando desinformação sobre aborto seguro, legal e gratuito. Eu realmente acredito que a revolta e a raiva são totalmente justificáveis, mulheres e meninas continuam morrendo e parece que isso não tem muita importância para a bancada “pró-vida”.  

Vi muitas pessoas argumentando: “não importa o que sua religião diz sobre esse assunto”. É verdade! Não deveria importar para o Estado, não deveria importar para a lei… mas a realidade é que importa para boa parte da população e esse fato dá poder pra quem entende isso.  Eu acredito que nessa luta existe espaço e necessidade para diferentes estratégias de diálogo e talvez uma delas seja iniciar a conversa do básico, se quisermos dialogar não menosprezar isso.  

Precisamos sentar e conversar sobre a realidade, explicar que o aumento de penas não consegue impedir que 1 milhão de abortos induzidos ocorram todos os anos no Brasil e, muito menos, que 1 mulher morra a cada dois dias por não ter acesso ao aborto legal, seguro e gratuito.  Mostrar os dados da desigualdade, de como essas medidas atingem de forma diferente mulheres brancas, pretas, ricas e pobres, a crueldade que se acumula nas interseccionalidades da pobreza e do racismo. Precisamos partir de um ponto de conexão que gere diálogo e esclarecimento, e essa missão é mais difícil! O ódio agrega muito mais do que a compaixão; a estultícia tem mais apelo para reunir pessoas ao redor da mesa do que a sabedoria. 

O PL 1904 representa um retrocesso significativo, não é verdade que com penas maiores e a urgência também se faz presente fora dos muros do Congresso. É essencial que a sociedade civil, em todas as suas esferas, resista e trabalhe arduamente para garantir a preservação dos direitos conquistados. Séculos de luta  X  23 segundos. É muito mais fácil destruir do que construir. 


Moara Lima – é mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Sócia do Lopes, Ormay Jr e Silva advogados, professora de Direito e Processo do Trabalho no Ceub. 


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