Vixi! Num careço de silêncio pra cair no sono não, graças ao meu bom Deus! Aprendi a dormir com o eco de sei lá quantos gritos de criança que ajudei a botá nesse mundo. Na hora da dor de expulsá um filho das entranha é que a gente vê a minina dexá de ser minina e virá muié de verdade. Num sei dizê se um dia gostei desse trabalho ou se foi a vida que me levou pra ele. É o que dá sê filha, neta e bisneta de parteira. No meu tempo, nóis paria em casa. Num tinha essa de ir pra hospital, tomá injeção pra dor e esperá o médico chegá. Isso é coisa da modernidade. Quem escolhia a hora era a criança e pronto.
Vi de tudo, moço, durante os quarenta anos que ajudei a parir. Se a criança não tava na posição, eu fazia ficá. Perdi pouca criança e quase ninhuma muié; muito menos que esses hospitais e esses dotô de agora. Pode perguntá na minha cidade quem é a Maria do Céu. Num tem quem não me conheça. Sinto saudade de lá. Depois que meus filhos vieram estudá na capital, ainda tentei ficá na minha Urucará. Mas a velhice chegô sem me pedi licença e me trôxe um monte de mazela que não me dêxa viver junto da minha gente. Agora, veja só, sô obrigada a morar, a cada semana, na casa de um filho. Que desgraça! Isso é castigo, eu sei. Eu ajudava as outra parir, mas não sabia parir os meus. No fundo, eu divia sabê o quanto eles iam me custá. Demorava mais de um dia pra eu botá esses curumim pra fora, como quem qué guardar pra sempre no útero, só pra num ter que cuidá, educá… Num sei se mudou alguma coisa, mas os homi do meu tempo num prestava! Nos usava, nos emprenhava e depois eles tudo saía pra caça, pra tal da colheita e pra branquinha. O sinhô sabe, né, moço? A mardita cachaça. Os infeliz grudavam uma semente na gente e olhavam, bem de longe, ela crescer; sorriam quando pegava o curumim no braço; ficavam tudo orgulhoso, o peito estufado e depois iam simbora pros assunto só deles, enquanto nós ficava com a dor dos peito rachado, com as criança gritando e toda a casa pra alimpar.
Eu emprenhava muito, eu! Acho que era os banho de rio que faziam meu corpo ficá remoso. Ainda escapei de umas barriga porque eu fazia umas lavagem que minha avó ensinava pras muié da comunidade. Ainda assim, pus no mundo sete filho, acredita? Cada vez que descobria a barriga saliente, lá eu chorava, maldizendo o traste do meu marido e maldizendo a criança que crescia em mim. Minha mãe chegou a me surrar numa das vezes que tentei tirá a criança. Mas eu lá queria saber de mais filho, moço? Filho é prisão. Sonhei em um dia na vida me formá enfermeira de verdade, com diploma pra botá na parede, conhecer outros homi, saí pra dança, essas coisa… Mas em Urucará tinha muito o que fazê não. O jeito era arranjá um marido e ter filho. Quem tinha coragem, vinha pra capital!
Meu azar foi gostá de um moço bonito, lavrador, que trabalhava junto com meu pai. Eu fugia pra gente se encontrá e pra minha desgraça, emprenhei. Fui obrigada a casá e deixei pra lá tudo que foi sonho. Depois que a barriga cresceu, meu marido virou um traste, de quem só fui me livrá quando Deus, com pena de mim, levou ele há vinte anos. Ainda assim, aguentei um bocado o mau cheiro da cachaça, os assanhamento com as vizinha e os filho que me fazia. Quando meus mininu ficaram homi feito, eu já tava cansada demais pra ver o tamanho do mundo. Agora tô aqui, em Manaus, numa casa que num é minha, onde num tem uma janela aberta pra eu admirá o sol e onde me ignoram porque passam o dia todo olhando pro tal do celular, parecendo uns retardado, tudo rindo e falando sozinho, o sinhô acredita? E aí quando digo que quero voltá pra minha ilha, num deixam porque lá vô tá sozinha. Mal sabem que a solidão é aqui, num quadrado que parece uma prisão. Depois, a débil sou eu! Me largam naquela casa o dia todo, me mandam a empregada me fazer tomá uns comprimido e ficá quieta. Isso lá é vida, moço?! Que saudades de Urucará!
Myriam Scotti nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance “Terra Úmida” foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip.
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