No momento em que escrevo este texto, estão ocorrendo os Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, e eu devo admitir que as Olimpíadas sempre foram motivo de profundo interesse da minha parte. Isso porque considero o esporte uma prática transformadora em termos humanistas, tanto quanto as artes visuais ou a música. Por isso, quando começam os jogos, eu simplesmente ligo a televisão e deixo rodar toda a programação. Todos os dias. Para ser sincero, nem me interessa muito a modalidade, sobretudo porque em muitas eu sequer tenho uma boa ideia do que é preciso fazer para vencer. Para além das especificidades técnicas de cada uma delas, existem ali muitas coisas que me atraem profundamente e de maneira verdadeira, como as histórias de superação que acompanham as vidas dos atletas e o aprimoramento técnico através do corpo.
A cada novo ciclo olímpico, existem atletas que dedicam suas vidas para conseguir o direito de disputar as sonhadas medalhas de suas modalidades, um símbolo poderoso de persistência, superação, disciplina e excelência técnica. Por isso, a conquista de cada medalha costuma ser um momento de muita emoção, que rompe a espessa carapaça de proteção emocional que os atletas precisam construir para manterem suas mentes aptas a guiar o corpo durante a competição.
Por outro lado, para muito além das histórias de superação e dos exemplos de excelência técnica que o corpo humano pode alcançar, em todas as Olimpíadas podemos ver exemplos singelos, onde a substância que compõe aquilo que consideramos humano em nossa espécie se apresenta de cara limpa, se posicionando sob os holofotes para nos provocar, para ousar nos fazer lembrar de que somos seres sensíveis que aos poucos, vão se dessensibilizando de maneira perigosa.
O Comitê Olímpico Internacional, inclusive, criou uma medalha especial para momentos desta natureza. Uma medalha cujo valor excede, e muito, o peso da conquista da medalha de ouro, haja vista que ela não pode ser conquistada por excelência técnica ou mérito esportivo. Essa medalha é conhecida como a Medalha Pierre de Coubertin, e é destinada a atletas que tomam atitudes que vão além da busca incondicional pela vitória em sua modalidade.
Em 1987, os velejadores croatas Pavle Kostov, Petar Cupać e Ivan Bulaja receberam a Medalha Pierre de Coubertin em Pequim, por demonstrarem espírito esportivo e humanitário. Os três colegas emprestaram o próprio barco de competição aos velejadores dinamarqueses Jonas Warrer e Martin Kirketerp, que tiveram o mastro de seu barco quebrado logo antes da largada da regata final, que decidiria as medalhas da categoria entre os dez mais bem colocados. Com o barco dos croatas, Warrer e Kirketerp conquistaram a medalha de ouro. E como não lembrar de nosso compatriota, Vanderlei Cordeiro de Lima, que, nas Olimpíadas de 2004 em Atenas, foi atacado no meio da rua por um espectador da maratona, o irlandês Neil Horan, que o empurrou para fora da pista, quando Vanderlei liderava a prova e estava próximo de conquistar a medalha de ouro. Para além do tempo perdido ao ser empurrado, o desgaste da agressão sofrida tirou a concentração do atleta, que não conseguiu manter o ritmo em que corria, sendo ultrapassado por outros dois atletas. Vanderlei, mesmo assim, conseguiu ficar com a medalha de bronze, apenas 15 segundos à frente do quarto colocado. Ao cruzar a linha de chegada, Vanderlei comemorou sua medalha de bronze como quem tivesse acabado de ganhar o ouro, demonstrando sua incrível determinação, resiliência e humildade.
No dia 28/07/2024, após perder nas quartas de final do judô e se recuperar na repescagem, a brasileira Larissa Pimenta venceu a atual campeã mundial Odette Giuffrida na categoria até 52 kg, garantindo a medalha de bronze para o Brasil. Sua adversária na disputa da medalha era mais alta, mais forte, mais condecorada e experiente, esteve nos Jogos do Rio 2016, no qual foi medalha de prata, e de Tóquio 2020, onde foi medalha de bronze, além de ser a atual campeã mundial em Abu Dhabi, como mencionado. Após uma luta tensa e desafiadora, ao superar Giuffrida, Larissa desmoronou em lágrimas, como quem não acreditava no que havia acabado de acontecer. Foi neste momento que um fato inusitado me surpreendeu e, desde então, se mantém presente de maneira constante em meu pensamento. Após ser derrotada, a adversária de Larissa atravessou calmamente o tatame em direção à atleta brasileira, se ajoelhou delicadamente e, olhando nos olhos de Larissa, disse: “Vai, levanta. Vai, levanta e dá para Ele a glória. Dá glória a Deus. Vai, dá glória a Deus.” Não me interessa aqui discutir o avanço das religiões evangélicas no país, tampouco suas implicações políticas e as problemáticas que rondam o tema. Especialmente porque o momento em si é envolto em uma atmosfera fraterna, singela e tão bonita que me faz pensar sobre isso todos os dias desde o momento em que assisti ao vivo. Larissa estava perdendo a luta e demonstrou uma força gigante para superar suas limitações e vencer sua adversária. No momento em que é derrotada, a adversária não só reconhece o fato de ter sido superada, mas oferece a sua presença como consolo e motivação para que Larissa encontrasse em sua vitória um significado maior do que sua conquista individual. Giuffrida, mesmo derrotada, teve em vista mostrar para Larissa que existem coisas que as unem que vão muito além de tudo o que as competições constroem para separá-las. Esse caráter transcendente da fé em comum que as atletas compartilham gerou um momento em que o espectador é arrancado violentamente de sua bolha de dessensibilização cotidiana, e é obrigado a confrontar-se com um senso de humanidade onde o mais fraco supera o mais forte e o mais forte (derrotado) se ajoelha diante do mais fraco para compartilhar sua humanidade em um momento normalmente caracterizado pela frustração da derrota.
Eu sinceramente não saberia dizer o quanto acredito que nós estamos precisando de imagens e momentos como este. Em um mundo profundamente individualizado, dessensibilizado e onde nossas relações são em si bens de consumo, não dá para ignorar este espaço de partilha que as atletas, através do esporte proporcionaram a milhões de pessoas ao redor do mundo.
Por acaso, hoje chegamos à edição de número 200 da Trama, algo que jamais fomos capazes de imaginar que seria possível quando começamos este trabalho. Até o momento, foram mais de 6 anos de muita luta, abnegação e sacrifício para manter um projeto tão ambicioso em funcionamento por tanto tempo. Sofremos muitas derrotas ao longo desses anos e conquistamos alguns marcos importantes, mas, acima de tudo, encontramos em nossas páginas muitos fragmentos de momentos tão singelos como esse de Larissa e Giuffrida, capazes de nos lembrar que somos seres sensíveis em um sistema desleal, que tenta levar de nós diariamente aquilo que resta de nossa humanidade. Para nós, é também motivo de tremendo orgulho pensar que cada edição publicada pode ter se apresentado aos donos do jogo como uma nova visão sobre a vida, sobre a cultura, sobre o mundo. Eu gosto de pensar que a Trama já se ajoelhou na frente de muitas pessoas e disse: vai, levanta.
Frederico Lopes
é artista e educador, graduado em artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em gestão cultural pela FAGOC. Possui treinamento profissional em conservação e restauro de papel pelo LACOR/MAMM-UFJF. Atuou no setor de curadoria e expografia do Museu de Arte Murilo Mendes de 2013 a 2017. Integrou a equipe de implementação do Memorial da República Presidente Itamar Franco, onde trabalhou na curadoria e na coordenação da divisão de educação até 2020. É fundador da Instituição Cultural Bodoque Artes e ofícios (2012), da Revista Trama (2019), do Museu de Artes e ofícios de Juiz de Fora (2020) e do Laboratório de experimentação em artes visuais e design (ARTELAB). Foi membro do conselho curador do MRPIF e suplente da vice-presidência do Conselho Municipal de Cultura na cadeira de artes visuais. É sócio honorário da Instituição Cultural Estação Canelas (Portugal). Também atuou como designer na editora Harper Collins (2022 – 2023). É autor do livro: Ensaios sobre Arte e Cultura (2022)
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