Que os cachorros são os melhores amigos do ser humano não é novidade. Não é de hoje que essa afirmação é feita. Hoje, pela manhã, pensei sobre isso enquanto tomava café na padaria, antes de ir para o trabalho. Na esquina da Avenida Rio Branco com a Itamar Franco, um cidadão de rua dormia envolto em panos sujos, tendo ao seu lado um lindo caramelo, que parecia dormir o sono dos justos, alheio aos passos apertados dos transeuntes na calçada. O carinho e a afinidade que uniam aquele cão ao seu companheiro me trouxeram à mente a beleza do amor e da cumplicidade sem julgamento, em uma sociedade tão repleta de individualismos, vaidades e preconceitos.
Não é por acaso que, na tradição clássica, o cachorro já figurava como símbolo da fidelidade; que grandes pensadores, como Erasmo de Rotterdam, no século XVI, já tenham exaltado essa fidelidade; que o grande humorista e boêmio, Emílio de Menezes, tenha feito questão de dizer que preferia a amizade dos cães à dos homens; e que o poeta juizforano, Belmiro Braga, tenha dedicado ao seu fiel escudeiro os seguintes versos:
“Pela estrada da vida subi morros,
Desci ladeiras e, afinal, te digo:
Se entre amigos encontrei cachorros,
Entre os cachorros encontrei-te, amigo!
Para insultar alguém hoje recorro
A novos nomes feios, porque vi
Que elogio a quem chame de cachorro,
Depois que este cachorro conheci.”
Dito isso, há quem possa indagar que, na sociedade contemporânea, as pessoas estão tratando melhor os cachorros do que os homens. É certo que existem exageros, luxos e ostentações no “mundo pet”, como aulas caríssimas de natação para cachorros, roupas, etc. Ao meu ver, além de ser um desrespeito às peculiaridades da vida animal, esse tipo de prática nada mais é do que o reflexo da desigualdade humana na vida dos animais domesticados. Para uns, tudo; para muitos, pouco ou quase nada.
O fato é que seres humanos e cachorros merecem ser tratados com dignidade. “Levar uma vida de cão” deveria ter um significado positivo na boca de ricos e pobres. Mas não é isso que acontece.
É curioso que, no início do século XX, no contexto da Belle Époque, no Brasil, os cachorros de raça se tornaram acessórios de moda. Apropriando-se dos hábitos cosmopolitas e elegantes europeus, madames brasileiras desfilavam com seus “pets” pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro como bolsas de grife. Concursos de raças caninas eram organizados. Em uma das revistas ilustradas da época, encontra-se até mesmo a notícia de uma rica senhora que destinou, em seu testamento, uma parte de sua herança aos cães. Hábitos que, é claro, dividiam opiniões: havia os escandalizados com a predileção de algumas pessoas pelos cães, em detrimento da caridade humana. Esse tipo de crítica chegava até mesmo a ser traduzido para a linguagem humorística das charges. Numa delas, é possível observar vários cachorros reunidos em volta da mesa, num jantar beneficente, no qual as sobras da comida (os ossos) eram destinadas às crianças desvalidas. Havia, ainda, os que criticavam a desigualdade entre os cães de luxo e os famosos “vira-latas”, bem como os que destacavam a necessidade de políticas urbanas de combate à proliferação desordenada de cães pelas ruas. Uma preocupação muito típica dos defensores das medidas sanitárias fortemente implementadas na época.
Independente de qualquer opinião acerca da relação entre ser humano e cachorro, o fato é que, nas décadas iniciais do século XX, parece ter aumentado o interesse pelos cachorros e o apego a eles no cenário urbano. A traumática experiência da Primeira Guerra Mundial, que estremeceu os pilares da razão iluminista, pondo por terra a crença na evolução inexorável da civilização ocidental, parece-nos ter sido a grande explicação para o fenômeno. Como não nos lembrarmos da emblemática imagem de Chaplin com seu cão fiel, no cartaz do célebre filme “Vida de Cachorro”? Ademais, cães farejadores eram enaltecidos nas reportagens da guerra como “heróis salvadores” de vítimas massacradas pelos destroços do conflito.
Antes mesmo da guerra, o poeta juizforano Belmiro Braga, em 1910, projetava-se nacionalmente numa foto-postal ao lado de um cão da raça “terra nova”, ao qual chamou de “Príncipe”, que ganhara de presente de um empresário de Caxambu. A foto, longe de ser inocente, foi uma perspicaz estratégia de construção de sua persona literária. Não por acaso, enviou-a a muitas das personalidades da época, como o próprio amigo e escritor Lima Barreto. Além de lhe acentuar as características de poeta “singelo”, de “alma simples” e “pura”, a imagem ao lado do cachorro se perenizou. Mais eficaz ainda foi a combinação dessa imagem com a famosa quadrinha de sua autoria, acima citada, e recitada, inclusive, pelo jornalista Chico Pinheiro, num dos jornais da Globo, em 2022.
A fiel amizade entre cão e ser humano é, realmente, inspiradora e atemporal, porque ela talvez expresse o que, no fundo, todos nós desejamos: o sentir-se amado pelo outro de maneira desinteressada, independente dos bens materiais, da condição social, etc. E, por fim, o fato de essa relação nos reconectar com o que há de mais genuíno em cada um de nós. O genuíno e o singelo encantam.
Mas, assim como os seres humanos, precisamos aprender a amar os cães. Por que não adotar um cãozinho abandonado, ao invés de comprar um apenas para satisfazer a sua vaidade? Por que não destinar uma parte de seus recursos a outros animais necessitados, ao invés de gastar com apetrechos supérfluos para o seu “pet”? Não confundir amor pelo seu “pet” com desrespeito à sua condição de animal dotado de outras especificidades também pode ser um bom começo. Afinal, querer que o fiel amigo se vista e se comporte como você é uma agressão, e não um carinho. Deixe-os andar como vieram ao mundo. Poupe-os desse mal-estar da civilização, do qual muitos de nós, humanos, gostaríamos de nos libertarmos. Ou será que, num mundo em que sutiãs já foram queimados, ainda há espaço para “lingeries” caninas?
Sérgio Augusto Vicente
Doutorando e mestre em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bacharel e licenciado em História pela mesma universidade. Dedica-se a estudos na área de história social da cultura no período correspondente à segunda metade do século XIX e às décadas iniciais do século XX, com ênfase nos seguintes temas: associativismo, sociabilidades, trajetórias, história intelectual, história social da literatura, memória, arquivos e coleções bibliográficas e documentais. Professor efetivo de História da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (MG). Possui experiência em pesquisa histórica, processamento técnico de acervo e difusão cultural em museus – como curadorias de exposições e mostras, palestras, minicursos e oficinas. Entre os anos 2022 e 2023, integrou a equipe curatorial de três grandes exposições que reabriram o Museu Mariano Procópio integralmente aos públicos, com novas abordagens historiográficas e narrativas expográficas. São elas: 1. Rememorar o Brasil: a Independência e a construção do Estado-Nação; 2. Fios de Memória: a formação das coleções do Museu Mariano Procópio; 3. Villa Ferreira Lage (ambientação da residência de uma família da elite senhorial brasileira do século XIX). Desde 2020, atua como escritor da revista Trama Bodoque: arte, cultura e criatividade (ISSN 2764-0639) e, a partir de 2022, também passou a atuar como membro do conselho editorial do referido periódico semanal.
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Amigo recebedor, historiador e íntimo das palavras.. Somente de um homem dotado de tamanha sensibilidade, e olhar crítico poderia surgir um texto como este que acabei de ler. Em tempo, faço minhas as palavras de Belmiro Braga.
Querido, Sérgio Augusto. Seus textos nos levam a reflexões profundas. Começam devagarinho, a partir de um olhar para o cotidiano e vão logo ganhando corpo através de citações e alusões inteligentes, assim como você. É um prazer ler suas crônicas, contos, poemas e aldravias. Obrigada por nos brindar novamente com uma leitura digna de um grande cronista.
Obrigado, meu queridos amigos!