A poesia dos dias comuns

Em uma mesa cercado por outros colegas escritores, no lugar do autógrafo, pela primeira vez escrevi um desejo naqueles exemplares do livro coletivo: que a arte possa colorir esses dias cada vez mais nublados. Logicamente, não me referi à previsão do tempo. Os dias comuns já ligados no piloto automático acabam se tornando monótonos. As árvores que renovam o nosso ar são tiradas de seu habitat natural para dar lugar a prédios e indústrias. Mais muros do que pontes. Mais farmácias do que livrarias. Os dias perdem a cor justamente porque nós já nos acostumamos a não olhar para o lado. E é aí que perdemos o mais bonito da vida: a poesia que mora nos detalhes. 

O poeta das miudezas, Manoel de Barros, nos convida a “transver o mundo”. Ele explicava que o olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. Para observarmos esses detalhes nos dias comuns é necessário ter mais do que apenas dois olhos, mas também sensibilidade e imaginação. Nós enxergamos a vida com a nossa bagagem, com a nossa essência e com as nossas experiências. E para encontrar essa beleza da poesia no nosso cotidiano precisamos, muitas vezes, desacelerar, olhar para o lado, mudar a rota e sair da nossa zona de conforto. 

Certa vez perguntaram para o Carlos Drummond de Andrade se ele gostava de poesia. A resposta não poderia ser menos poética: “Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida nisso tudo”. A poesia não está escondida. Somos nós que não olhamos para ela. Ou pode ser que até vemos, mas não percebemos, porque para isso precisamos transver o mundo, ou seja, transfigurar a realidade, olhar com a alma. 

Conforme percebemos a presença dessas singelezas no nosso dia a dia, a vida se torna mais colorida e menos sofrida. Os dias ganham um novo perfume. E não é necessário fatos extraordinários para isso. A poesia está nos dias ordinários e a arte mais bela está pertinho da gente. No céu azul. No cheiro de café passado. Na flor que ousa se desenvolver na rachadura da parede. No canto dos pássaros. Nas folhas balançando no topo das árvores. No pôr do sol. Na lua. Nas estrelas. Na borboleta que pousou na cortina. Quando notamos que é na simplicidade que a poesia mora, não deixamos mais de enxergar a beleza nos dias comuns. Estão todos convidados a apreciar


Gustavo Tamagno Martins, Natural de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, é jornalista formado pela FSG – Centro Universitário, pós-graduado em Jornalismo Digital pela Unyleya e mestrando em Letras e Cultura pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Gustavo é autor de quatro livros: O cemitério misterioso (2017), O sótão das lembranças (2018), O colecionador de momentos e outras crônicas (2022) e Ansiosos, dirijam-se a este guichê (2024). Também tem participação em antologias nacionais e locais. Foi patrono da 1ª Feira do Livro ao Ar Livre de Nova Pádua (RS), em 2021. Já ganhou por duas vezes o Concurso Anual Literário de Caxias do Sul, em 2023 como primeiro lugar em crônicas e em 2024 como segundo colocado na categoria de contos. Participa de projetos como Escritor na Comunidade e Autor na Escola. Na área profissional, já atuou na redação do Jornal Pioneiro, do Jornal O Florense e da TV Câmara Caxias. 


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