Há sola no que assola

A série Há sola no que assola (2021-) é um ensaio visual realizado com câmera de celular e que consiste no registro de pegadas marcadas nos calçamentos da cidade de Belém/PA. É um trabalho que advém de um conjunto de caminhadas que visam tatear, a partir da produção de imagens, as superfícies urbanas a afim de tomar contato com as suas inúmeras formas e conteúdos. Qual a força de uma pegada? O que deixamos quando passamos? O que deixamos quando pisamos? O que pisamos quando pisamos? Nas superfícies da cidade estão entranhadas e esculpidas múltiplas pegadas e qualquer que seja o motivo que ateste tal aparecimento, não se pode escapar ao fato que elas evocam uma performatividade de determinados meios urbanos, um gesto, um comportamento continuamente restaurado e repetido. Não são rastros passageiros, são rastros que se tornam firmes e fixos e que demarcam tanto o concreto das cidades, a sua dureza e aspereza, quanto o quão permeável, poroso e modelável este concreto o é. Apesar de fixos, são pisos, solas que tendem rapidamente a se esfacelar, estão sempre no limiar de uma quebradura, são superfícies que precisam, de tempos em tempos, de um reforço ou de serem reformadas. Dessa forma, a cidade, ou isso que comumente chamamos cidade, está encarnada de rastros que rasuram a sua propalada polidez, são rastros que racham a sua linearidade, seu fundamento. Um simples passo desavisado e toda a sua lógica é demovida do lugar inquebrantável a que fora prometida. Estamos diante, talvez, de uma outra arquitetura, uma arquitetura menor, uma anti arquitetura, abrupta e efêmera, uma arquitetura dos passos, que atrapalha e bagunça a lógica das grandes engenharias conduzidas à revelia de qualquer vida ao rés do chão. Um passo que interfere e se perde, que marca e demarca uma posição, ainda que puramente casual. Um passo que inscreve e explicita as fraturas, retrato da falência urbana, uma estética do imponderável, do acaso, do que transita pelo transitório, do que se apega ao mínimo, do contato inevitável, do contato que a cidade por mais reformas que imponha não pode evitar. Há sempre uma camada que se revela e se desfaz, uma camada sobressalente que ativa todo um composto, um emaranhado de outras vidas que colidem e repercutem umas nas outras. Estas pegadas, ao se imiscuírem na própria epiderme urbana, apontam para presenças e permanências, e de modo sutil, a sua maneira, parecem sugerir atos indizíveis, forças de ocorrência não verbais; linguagens primordiais. Este trabalho, deste modo, é um estudo em processo que indaga sobre o que os chãos da cidade estão a dizer, o que testemunham, que tipo de histórias emergem dali e o que podem nos contar sobre que cidade é essa que nos é imposta? Assim, não é casual perceber que cada pegada endossa um caminho de materialidades que abarca um quebra-cabeças de geografias e de afetos, são elas os rastros insistentes, as solas que sobram daquilo que assola.


 

Artur Dória (1987) é cearense radicado em Belém/PA. É doutor em artes pela UFPA (2022), mestre em artes pela UFC (2016) e graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFC (2011). É artista de performance, pesquisador, escritor e suas áreas de interesse se dão nas imbricações entre corpo e cidade e suas múltiplas transmutações diante do colapso climático e ecológico. Para pensar estas questões o caminhar é utilizado por ele como uma metodologia de criação performativa aliada a uma série de práticas, em especial, a escrita. Dentre seus principais trabalhos destacam-se Paisagens Caminhantes (2015), Corpoentorno (2016), Para um caminhar suave (2016), Espezinhar (2017), a série Os amigos que desconheço (2018-2022) e a série Geografias para pisar descalço (2023). É autor dos livros Trago de Passos Descalços (Editora Substânsia, 2017), Túmulo de Vagalumes (Bar Editora, 2020) e Paisagens Caminhantes (Editora CRV, 2020).


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