No dicionário o verbo perder possui inúmeros significados, dentre eles :
1. deixar algo em algum lugar por esquecimento ou distração.
2. ficar sem a posse de. Assim perder.
Em nossa realidade, longe das regras gramaticais, tem um significado ainda mais forte e arrebatador, que não se conjuga, é mais que um verbo transitivo ou intransitivo. Perder é intransigente. Perder é tatear no escuro, procurando algo ou alguém que não está ali, mas fica-se insistindo em achar. Quem, este ou aquele, lida bem com a perda? Várias pessoas. Mas elas são seres evoluídos ou apenas aceitam? Infelizmente a resposta ainda não sei. No entanto, escrevo-te para amenizar o peso da perda que paira sobre o meu ser.
Dentre todas as primaveras, a mais cinza das que vivi foi quando te perdi. Achava um desperdício andar pelas ruas e ver tantas flores, das mais variadas cores, sentir os cheiros diversos e um vento macio passando pela tez e levantando carinhosamente os meus cabelos. Aquela estética da beleza não fazia o mínimo sentido, perdi a poesia que havia em mim. O olhar curioso. E a atenção em ver algo novo. Tudo exalava nascimento e em mim só pairava a morte. Desmoronei, mas a vida continuou e eu achava um absurdo que o mundo todo continuasse com sua engrenagem. E eu? Jovem-criatura-imatura achava que tudo deveria estar estagnado para que eu pudesse viver o meu luto (MEU).
O ônibus que diariamente atrasava continuava atrasado, com seus vidros sujos, pneus carecas e sempre lotado. A mulher que passeava com o cachorro que sempre andava com a cara apática e cansada continuava com o seu ritual matinal: andar com o pobre cachorrinho puxado, quase decapitando-o, todas as vezes que o bichinho tentava desviar do caminho.
Os meninos e meninas com as fardas da escola. As pessoas sempre com pressa. Rostos cansados. Algumas lojas abriram, outras fecharam. A cidade continuava com o mesmo ritmo, que para meu egoísmo deveria ter parado. Igual a minha vida. Não sei se sou egocêntrica ou se a dor deixa as pessoas assim. Você nunca me chamou de egoísta, mas outras pessoas sinalizavam que sim, continuo achando um exagero, dramática que sou.
Mesmo sem tua presença sou apenas mera espectadora, observando a banalidade da vida diária. Com sua rotina estressante, mas que nos acostuma a criar hábitos, por vezes gentis e amorosos, que ao perdemos vem o lamento. Eu não queria compreender porque a vida, apesar da minha dor, fluía. Não estava conseguindo enxergar, no entanto, que ela confluía para outros rios e mares, com uma dança que nem sempre estava acostumada, ou que mal sabia qual era o ritmo.
Seguir era a única opção? Não fiz a pergunta a ninguém, porque tinha certeza que ninguém teria essa resposta. Parti para a astrologia. Ler horóscopos: fingir acreditar na cor do dia ou no número da sorte. Comecei a pôr a culpa no signo, no ascendente, no sol ou na lua. Depois veio a religião, entoei todos os cânticos, fiz todas as promessas, acendi velas, comprei flores, tornei-me supersticiosa, mas ainda assim a dor doía.
Eu sabia que a primavera e seus múltiplos tons acabaria um dia, mas o que brotaria em mim? Mais uma vez sem saber a resposta procurei pistas na yoga, artesanato, dança, culinária e no mais que pude fazer. A caminhada tornou-se longa. A rotina enfadonha. Os dias longos, as noites tortuosas.
No dia em que sabia que ia te perder sangrei e nos meses que seguiram o sangue não estancou. E lembro que eu vi um buraco no chão, as vozes dos falantes que estavam ao redor tornaram-se apenas sons longínquos que eu não sabia identificar. Achei que a cena era como um filme que se passava em câmera lenta e eu passei a não entender mais nada. Tentei uma fuga, sem sucesso. Todos os dias, em uma sucessão, eu me enterrei e te enterrei. Todas as tuas dores doíam em mim, mas eu não sentia. E me culpava por isso. Busquei tudo e o consolo não veio. Cansada de chorar, rezar, lembrar, lamentar. Principalmente de não poder fazer nada.
Perder não fazia parte dos meus planos. Agora, que a maturidade insistiu em adentrar meu ser, confesso o quão egoísta sou, narcisista convicta, possessiva e competitiva Mas apesar de todos esses adjetivos, que em alguns momentos, não me orgulham, ainda assim eu perdi. E tudo à minha volta virou um imenso vazio cinza. Não havia como tu ficares. Pedi. Implorei. Desejei que não fosse, mas perdi. Nos perdemos.
E nesse oco que ficou em mim, que só tu és capaz de preencher, vou cultivando outras primaveras, quem sabe outros verões. Não se sabe se a vida é ciclo ou círculo. Não se sabe se escolhemos ou somos escolhidos. Nessas muitas primaveras que passaram, alguns dias de afago outros de mansidão, mas em sua maioria são transitivos, eles urgem por um complemento.
Andreia Santos é jornalista, especialista, mestre e doutora em Literatura. Professora. Seu universo é formado por letras. Desde a mais tenra idade escreve poemas, em capas de livros, guardanapos… Alguns foram perdidos, outros guardados e outros estão sendo publicados. Possui um amor avassalador por contos e crônicas.
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