Certamente a leitora ou o leitor já se depararam com uma situação – geralmente pouco amistosa – onde um dos interlocutores de uma conversa (leia-se, discussão) denomina o outro, com razão ou não, de ‘fascista’. Inicialmente uma categoria de análise usada principalmente por pessoas envolvidas nas pesquisas acerca da conjuntura política e social da Europa no século XX, essa terminologia passou a fazer parte do vernáculo de amplos setores da sociedade ainda durante a década passada. Essa utilização leva, inevitavelmente, ao questionamento que serve como título dessa intervenção.
Mas qual seria o grande problema disso?
O problema pode ser dividido em dois blocos: o esvaziamento do sentido do termo em seu uso popular e a dificuldade das pesquisadoras e pesquisadores em definir seu significado. Para complexificar ainda mais uma situação que já é complexa por si, esses dois blocos estão irremediavelmente atrelados um ao outro.
Quanto à problemática do esvaziamento do sentido de ‘fascismo’, é importante ressaltar que uma terminologia demasiadamente aberta serve como objeto de disputa por lados opostos, cada lado buscando impor sua própria visão de significado do termo como aquela que corresponde à realidade.
A utilização esvaziada do termo proporciona uma disputa aberta por seu sentido e, com isso, um uso excessivo e generalizado, banalizando um termo cuja conceituação já é um desafio para quem o estuda. Isso gera um problema adicional: se tudo é fascismo (e se todos são fascistas), nada é fascismo (e ninguém é fascista). Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o sentido é disputado, ele também perde sua essência e se torna um argumento retórico com pouca ou nenhuma serventia prática.
Originalmente utilizado como estratégia das esquerdas para atacar as direitas, agora parece ser uma arma desmuniciada de sentido e disponível para uso por ambos os lados da contenda. Leandro Konder, em 1977, já advertia para esse problema:
Por seu alto teor explosivo, a palavra “fascista” tem sido frequentemente usada como arma na luta política. É compreensível que isso ocorra. Para efeito de agitação, é normal que a esquerda se sirva dela como epíteto injurioso contra a direita. No entanto, esse uso exclusivamente agitacional pode impedir a esquerda, em determinadas circunstâncias, de utilizar o conceito com o necessário rigor científico e de extrair do seu emprego, então, todas as vantagens políticas de uma análise realista e diferenciada dos movimentos das forças que lhe são adversas.
A ‘análise realista’ desejável, nas palavras de Konder, leva ao segundo bloco em que o problema foi dividido. Passando à problemática da conceituação de fascismo pelas pessoas dedicadas às pesquisas sobre o tema, há um aprofundamento no que concerne à complexidade do assunto. Rios de tinta já foram vertidos em busca de um conceito que seja ‘definitivo’ – ainda que definitividade não seja possível ou desejável em qualquer campo do conhecimento –, mas não há, até hoje, qualquer conceito cujo estado possa ser considerado pacificado. Não sem razão, Stanley Payne (1979), considera o fascismo como “o mais vago dos termos políticos contemporâneos”.
Grosso modo, o fascismo pode ser definido como uma ideologia, um movimento político e, caso avançasse até tal ponto, uma forma de governo autoritária de extrema-direita surgida no contexto das crises das democracias liberais europeias do período entreguerras (1919-1938).
É marcado pela presença de determinadas características: ultranacionalismo frequentemente de natureza expansionista/imperialista, mobilização e paramilitarização das massas recrutadas principalmente entre as classes médias (mas também entre as classes trabalhadoras), liderança carismática cujo discurso tende a prometer soluções para a reversão de uma decadência da nação, uso (ou disposição ao uso) da violência contra os inimigos políticos, anticomunismo, antiliberalismo/anticapitalismo formal.
A delimitação do fenômeno fascista no espaço (Europa) e no tempo (entreguerras), juntamente com a listagem de suas principais características, permite, a bem da verdade, situar principalmente os regimes encabeçados por Benito Mussolini (Itália) e Adolf Hitler (Alemanha) como propriamente fascistas. Outros regimes da mesma época, como os de António Salazar (Portugal), Engelbert Dollfuss (Áustria) e Francisco Franco (Espanha), entre outros, ‘falharam’, por suas próprias razões, em cumprir tais requisitos, não sendo classificáveis como fascistas a despeito de serem produtos típicos dessa época. Ideologias, movimentos políticos e regimes posteriores, embora não se negue a capacidade de adaptação do fascismo, igualmente falham em ser considerados fascismo, sendo categorizados de outras formas – neofascismo, pseudofascismo, governo fascizado, etc. – cujas definições esbarram nos mesmos problemas conceituais do fenômeno original.
Ao olhar atento é impossível perceber, após uma breve análise, que a maioria dos casos em que o termo fascismo é levantado como acusação – e, em alguns casos, como uma categoria de análise – o argumento não é sustentável frente à realidade. Sendo o fascismo apenas uma espécie pertencente ao grande gênero da direita (Konder, 1977), devemos levar a sério a advertência de Ernst Nolte de que “devemos ter cuidado em não inferir fascismo a partir de traços “fascistas” isolados”. Embora tudo que é fascismo seja de extrema-direita, nem toda (extrema) direita é necessariamente fascista. O “fascismo de esquerda”, por sua vez, é uma mera falsa simetria de caráter duvidoso que, para além de não possuir qualquer fundamentação rígida, sequer merece atenção.
Tudo bem, mas eu não posso, então, chamar ‘X’, ‘Y’ ou ‘Z’ de fascistas?
Não é a intenção dessa intervenção proibir qualquer pessoa de definir determinadas pessoas ou movimentos como fascistas. Propõe-se, tão somente, atentar para problemas que surgem do uso esvaziado do conceito e da ausência de um conceito pacificado de fascismo na literatura especializada. Efetuada essa advertência e possuindo ciência das questões apontadas, o uso retórico continua válido, em certo limite, porque continua possuindo o efeito de agitação pretendido.
Referências:
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
MOLINERO, Carme; YSÀS, Pere. El règim franquista: feixisme, modernització i consens. 2ª. ed. Vic: Eumo Editorial, 2003.
NOLTE, Ernst. Three faces of fascism: Action Française, Italian Fascism, National Fascism. New York: Mentor Books, 1969.PAYNE, Stanley G. El fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1979.
Bruno Cavichioli – Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas com Estágio Doutoral realizado junto à Universitat Autònoma de Barcelona (UAB/Espanha). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória (NUPPOME/UFPel). Atualmente pesquisa a instrumentalização política do medo durante as ditaduras de António Salazar (Portugal) e Francisco Franco (Espanha), além de também pesquisar sobre legados autoritários na Ibero-América.
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