À minha frente, a jornalista ajusta-se na cadeira de couro preto idêntica à minha e adota uma postura profissional. O estúdio está iluminado de forma impecável e há várias câmaras espalhadas e microfones escondidos, mas nada disso me intimida, pois sou um youtuber

-Olá, Joystick! – Cumprimenta-me, pondo uma tira do cabelo castanho ondulado atrás da orelha. O seu sorriso é afável, mas algo nos seus olhos brilhantes parece avaliar-me com mais profundidade. – Obrigada por teres aceitado vir a esta pequena entrevista. Como te sentes? – Pergunta, sorrindo para mim. 

-Sinto-me bem. Agradeço o convite. – Respondo, inclinando-me ligeiramente para a frente para capturar cada detalhe do seu rosto. 

Os olhos dela são lindos, de um azul cristalino que me transporta para as memórias da minha falecida mãe. Lábios pintados de vermelho, tal como a minha mãe fazia quando queria agradar ao meu pai. O seu perfume refrescante, provavelmente caro, recorda-me dos verões passados em família, em que a minha mãe me aplicava protetor solar nas costas com as suas mãos delicadas. 

-Que bom, fico contente! – Solta uma pequena gargalhada que esconde com a mão. – Conta-nos, como é ser um youtuber gamer? – Questiona-me, mexendo no cartão que segura com as duas mãos pequenas. 

-Ser youtuber gamer é incrivelmente gratificante para mim, porque me dá a oportunidade de expressar a minha criatividade e de partilhar a minha paixão com um público global. Cada vídeo é uma forma de me conectar com pessoas que partilham os mesmos interesses e é extraordinário ver como o meu trabalho impacta a vida dos outros. – O discurso ensaiado sai-me de forma automática, mas noto um leve tremor na minha voz. Tento disfarçar o calor que sinto nas faces. 

Ela acena interessada, mas o seu olhar não se desvia do meu. 

-E aprendes alguma coisa ao longo do processo? – Inquere, enrugando a testa e elevando o queixo de baixo para cima e novamente para baixo. 

-Sem dúvida. – Pisco-lhe o olho num gesto que espero parecer natural. – A cada vídeo exploro novas ideias, melhoro a minha capacidade de edição e aperfeiçoo a minha comunicação. 

-Parece realmente estimulante! – Lança-me um sorriso caloroso, mas algo no seu tom sugere que está à procura de mais. – O que te motiva a continuar? Para além do dinheiro e da fama, claro. – Brinca, e as covinhas nas suas bochechas aparecem. Covinhas parecidas às da minha mãe. 

Passo a mão pelo cabelo antes de lhe responder. Sinto um impulso de tocá-la, de levá-la comigo. Quem me dera poder trazê-la para casa. 

-O que me motiva é saber que posso inspirar, educar ou entreter alguém, mesmo que seja só por uns minutos. – Enquanto me expresso, as minhas mãos tocam-se numa dança que não consigo controlar. 

-Para além de jogar, o que mais gostas de gravar? – Pergunta, cruzando as pernas. 

As pernas dela também me lembram as da minha mãe. Um derrame aqui e ali, a depilação no ponto e rechonchudinhas. Tento não me fixar muito nelas, mas a semelhança come-me o coração. 

-Gosto de fazer unboxings. – Respondo, tocando na bochecha com um dedo, como se isso ajudasse a controlar as emoções que se agitam dentro de mim. 

Unboxings? Podes explicar o que isso significa? – Pede-me, unindo as sobrancelhas. 

-Claro. É quando abro coisas que compro ou presentes que recebo ao vivo ou em vídeo. No fundo, é abrir uma caixa e mostrar o conteúdo em câmara. – Esclareço, entrelaçando os dedos para evitar que tremam. 

-Recebes muitas prendas? – Questiona-me, ajeitando o intercomunicador na orelha. 

-Não tantas como gostaria. – Abano a cabeça em negação. – Talvez por isso aprecie tanto os unboxings. Aliás, vir aqui hoje deu-me vontade de gravar um quando chegar a casa. Quer vir comigo e vê-lo em primeira pessoa? – Atrevo-me, atirando-lhe um sorriso lateral. 

A jornalista ri-se, inclinando levemente a cabeça para apoiar a testa no punho, tal como a minha mãe fazia. 

-Adoraria, mas tenho outras entrevistas para fazer. E o nosso tempo acabou. – Exibe um beicinho quase impercetível. – Espero que tenhas gostado. Foi um prazer ter-te aqui! – Estende-me a mão. 

-Gostei muito. Igualmente. – Aperto-lhe a mão frágil. 

O toque dela é suave, tão macio que quase me faz estremecer. A pele delicada lembra-me o veludo das almofadas antigas da casa da minha mãe. Pergunto-me como seria se aquela mão sedosa fosse ferida, se uma rosa a picasse, se um cão a mordesse… o sangue quente a escorrer como uma gota de chuva solitária no vidro de um carro em movimento. Que visão bela seria. 

Deixo o estúdio com a memória do toque dela ainda viva nos meus sentidos. 

Em casa, levo a câmara até ao jardim e monto-a no tripé. Coloco o microfone na gola e ajusto a posição. Começo a gravar. 

-Saudações meus gamers! Aqui é o Joystick e hoje temos um unboxing muito especial. – Anuncio com entusiasmo, gesticulando com as mãos. 

Agarro numa pá e começo a escavar no local onde enterrei o contentor com a minha mãe. 

 

 


Lara Filipa Almeida Paiva é uma engenheira física portuguesa apaixonada pela leitura e escrita. Relativamente ao seu gosto por escrever, este surgiu na adolescência com a redação de fanfics e, com o tempo, expandiu o seu universo para criar histórias mais sérias. De um modo geral, é uma pessoa criativa e ambiciosa, estando sempre pronta a aprender mais e a desafiar-se. Em 2024 publicou o conto de mistério “A cama humana” na edição do ano 006 número 201 da revista Trama Bodoque. 


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