“Ferro na boneca” é o que eu escuto

Esta buceta não podia ser outra.

Eu gosto mesmo é de padaria e de comer pão que acabou de sair do forninho.

– Maria, quando é que você vai casar? (Pensei eu mesma com minhas mãos crispadas).

Pensei e não prossegui com tais pensamentos.

Eu era tão novinha quando tudo começou e ainda me sinto presa ao passado.

Feito uma erva-daninha que de tanto puxar, ficam as pequenas raízes no fundo, brotando de novo e de novo.

Cada dia novo é só mais uma noite que nunca tarda, janelas fechadas e um cortina que, rasgada ao meio, apenas impede que os homens lá fora vejam minhas coisas aqui dentro, todas elas desencarnadas ou vendidas a preço de banana.

E é com elas que eu me deito, toda noite, madrugada.

Antes ser menina sem vergonha a fazer pose para foto em festa de quinze anos com os putos te beliscando na bunda e puxando seu cabelo.

– Vou te chupar todinha, piranha!

Eu não.

Eu sou esse suspiro que engole direto para não passar vergonha e pagar as contas em dia.

As contas de um cafofo lá pelas bandas perdidas do bairro do meu padrasto.

Eu não!

Era o que eu estava pensando, mas era sempre outra coisa.

Um desejo de casar na igreja com festa para família e amigos e toda a desgraceira toda junta.

Eu de vestido de noiva com cara de piranha.

Fotos pra sair na coluna social do jornalzinho mequetrefe, da capital mequetrefe.

E acabando tudo em uma suruba mal planejada.

Nem gozar eu quero mais.

Eu não, não mesmo!

Eu gosto mesmo é de padaria e dos sonhos atrás das vitrines engorduradas, no centrão.

Não ter nenhum pensamento para esquentar a cabeça e beber água de meia em meia hora para aluviar as partes de baixo.

Eu não tenho medo, tenho muito nojo, isso sim.

Não tenho vergonha, e sei os meus direitos, mesmo sem ter estudado todas as séries e repetido os anos até me descobrir puta.

O primeiro boquete atrás da porta.

Quinze reais na mão para comprar chiclete e bala, eu tinha onze anos.

O que faltava de inteligência sobrava na sacanagem.

O quarto, à noite, minha mãe e o meu padrasto, debaixo da coberta, descoberta, o vento na janela aberta, um calor que soprava a morte e umas coisas que eu aprendi observando aquelas cenas, no quarto da minha mãe.

Até ela ser despejada e tudo ruir pra sempre.

Eu não tenho sorte mas não tenho medo.

Nem lembro quantas vezes dei a vida uma noite, fazendo a força para aguentar enquanto me lambuzam com gasolina e espuma.

Isso eu faço, quase toda noite.

Sem parar ainda que ardendo e sem dó.

– Ferro na boneca, é o que escuto.

Mas quem se importa? Nem eu.

 *  *  *

Sem parar ainda que ardendo e sem dó.

A história do meu padrasto depois eu conto.

Recapitulando:

Esta buceta para arder não para, o fogo por dentro, espuma, gasolina e faíscas na saída.

Mas eu não sou nenhuma coitada.

Pago os meus pecados à vista.

Quase matei afogado um camarada aí que cismou comigo, hoje acho graça, mas na época me pareceu ainda mais engraçado.

Isso tudo foi antes, quando eu ainda era iludida e acreditava na conversa mole de algumas pessoas, como a da minha mãe.

Eu tive alguns empregos aí, uns estágios pra variar enquanto fazia um curso técnico meia-boca cheio de professores que se achavam.

Isso foi em 2015, eu acho.

– Maria, quando é que você vai casar? (repetia a vozinha dentro da minha cabeça oca e as minhas mãos crispadas).

Crispadas sim, de muito ódio. Mas nojo eu sinto também, medo? Nenhum.

Aprendi com a minha mãe, eu tinha onze anos, um olho aberto o outro fechado, eu via tudo pelo burado aberto do olho mal disfarçado, a janela e o armário. A porta aberta.

Era assim, toda noite.

Mas coitadinha eu nunca fui.


Gilbert Daniel da Silva é escritor, autor dos romances Mocinho, Adeus (2018) e Era Uma Esperança Grande Demais Para Um Homem Tão Pequeno (2019). Reside em Belo Horizonte.


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