Amar é para os fortes é uma série brasileira lançada pela Amazon Prime em 2023 com 7 episódios que abordam a truculência policial nas favelas do Rio de Janeiro e como a violência coexiste no cotidiano dessas pessoas que desenvolvem suas tarefas diárias sem saber se voltarão para casa por conta de uma operação que deu errado.
Os episódios desdobram-se com base no álbum homônimo “AMAR é para os FORTES” lançado em 2018 por Marcelo D2 e retratam de forma audiovisual as faixas “Alto da Colina” em que um dos refrões é o início do título desse ensaio), “Febre do Rato”, “Parte 2”, “Depois da tempestade”, “Resistência Cultural”, “AEPOF” e “Filho de Obá”.
“A mãe sai pra trabalhar e pede que ouça suas preces”, trecho de “Alto da Colina” sintetiza muito bem o cotidiano de Rita, mãe de Sushi e Sinistro que, vivendo o dia a dia na Maré, sai da favela para trabalhar em busca do seu sustento e o dos filhos e torce diariamente para que fiquem bem e a salvo. Todavia, tudo muda após uma batida policial no dia das mães.
O filho mais novo, Sushi, ao decidir fazer uma surpresa para Rita, acaba na mira do policial Digão, sendo brutalmente assassinado. A história desenvolve-se em torno das famílias de Sushi e Digão a partir da busca por verdade, justiça e reparação, lema da luta contra violações de direitos humanos durante a justiça de transição na América Latina.
“Dizem que é bala perdida mas não param de atirar, trazem armas, seus coletes e licença pra matar”. Ainda hoje persiste uma grande resistência de práticas institucionais que são autoritárias dentro de um sistema eleitoralmente democrático. Quando pensamos em terrorismo de Estado (TDE), naturalmente somos transportados ao passado recente brasileiro: A ditadura civil-miltiar de 1964 que perdurou até 1985.
Bonasso (1990) vai sintetizar que o TDE é um modelo estatal contemporâneo que transgride os marcos ideológicos e políticos da repressão legal, onde apela a métodos não convencionais, extensivos e intensivos, para eliminar a oposição política e o protesto social, seja ele armado ou desarmado.
Padrós (2005) retrata que o uso do terror como forma de controle tem duas dimensões: a primeira é a comportamental, através da imposição de um novo comportamento político a partir da obediência absoluta das diretrizes criadas pelos detentores do poder. A segunda é a ideológica, ao moldar as instituições recorrendo a mecanismos de cooptação, a fim de garantir uma obediência voluntária que tranquilize os novos sujeitos políticos.
Dessa forma, a política de amedrontamento é a chave para atingir os objetivos e a dinâmica do terrorismo de Estado. A principal ferramenta dos agentes da repressão brasileira foi a tortura como forma de manutenção de poder, aqui compreendido por poder desaparecedor (o de fazer desaparecer).
Dentro dessa lógica, sabe-se que o TDE surge como expressão da Doutrina de Segurança Nacional Brasileira. Alves (2005) nos diz que o TDE é uma ideologia de dominação de classe que tem sido utilizada como justificativa para propagar a opressão da classe mais violenta, em prol do desenvolvimento econômico e da garantia da segurança interna.
Não à toa, o slogan do governo ditatorial era “segurança com desenvolvimento”, conectando o desenvolvimento capitalista com a necessidade de um ambiente interno controlado, reforçando a necessidade de combater ativamente o outro em prol do avanço econômico do país. Assim, o estado produziu um clima constante de suspeita, medo e racha de valores entre a população, criando um solo fértil que serviu como esboço de campanhas abertamente repressivas que, de outra forma, não seriam normalmente toleradas pela população.
Essa necessidade de controle era intrinsecamente ligada à defesa da segurança interna contra o suposto “inimigo” e se antes eles eram os comunistas e subversivos, que ameaçavam valores sociais, hoje, são os pretos, pobres e periféricos, em prol do combate à guerra às drogas.
Duas coisas tornam-se claras quando analisamos o passado e o presente: esse inimigo interno ainda é marcado pela abstração, ainda é um ser-amorfo que permeia o imaginário brasileiro. Para além disso, os agentes do Estado ainda recorrem a instrumentalização do medo, fazem uso indiscriminado da violência, chacinas e desaparecem com corpos pretos, há muitos Sushis e Ritas por aí.
Fato é que temos notícias e mais notícias de casos como a Chacina de Jacarezinho (2021), operação policial (da polícia civil) com mais mortos na história do Rio de Janeiro; a Chacina da Vila Cruzeiro (2022), operação realizada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais da PMRJ (BOPE), com a finalidade de rastrear um comboio de traficantes que, de acordo com o Coronel Luiz Henrique, vieram para instalarem-se em favelas do Rio de Janeiro “devido à redução de operações policiais e da presença policial nesses locais”; Chacina do Complexo do Alemão (2022), realizada pela polícia civil com a justificativa de investigar supostos ladrões de carros e bancos que se escondiam no local. No dia seguinte à operação, o porta-voz da PMRJ admitiu que a operação havia sido um “enxuga gelo”: não teve outro resultado a não ser a perda de 18 vidas civis.
O que isso tem haver com o passado? Quando pensamos em Brasil, as políticas de verdade, memória e reparação por violações de direitos humanos durante a ditadura militar são limitadas. O que a Comissão Nacional da Verdade adotou como violência institucional foi uma visão restritiva que excluiu grande parte da população: não contemplou como vítima membros do movimento negro que foram monitorados e perseguidos políticamente pelos agentes da repressão, deixando de fora a atuação de grupos de extermínio contra grupos a margem da sociedade.
Esses elementos são retratados no artigo “Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a negação do sofrimento negro no Brasil” de Felipe Freitas e Ana Flauzina, que chamam a atenção para a existência de uma linha contínua da produção de violência institucional, relatando que a prática da tortura e da morte contra pessoas negras é uma herança escravista que antecede a ditadura, mas aprofunda-se nesse contexto e segue existindo no presente (ainda que desconsiderada pelos procedimentos institucionais de resposta, como se fossem apenas acontecimentos do cotidiano).
A violência institucional do presente que vitima sobretudo homens jovens, negros e pobres, não dispõe de uma política de reparação para esses casos, está muito aquém do direito internacional e direitos humanos, dependendo do protocolo de ações judiciais individuais e coletivas tendo como autores as mães e familiares de vítimas letais e tem como única medida a visão restritiva do que se entende a reparação: apenas a indenização.
Quanto vale a vida de um periférico? Para esses movimentos que lutam contra a violência estatal no presente, não se trata apenas de reivindicar direitos construídos em cima de um entendimento considerado excludente dentro do campo do direito internacional e direitos humanos voltados a casos sobre a ditadura.
Exige-se uma investigação robusta e processos que sejam voltados à responsabilização criminal, a imprescritibilidade de ações judiciais que tem como réu o Estado e a necessidade de uma reparação integral, para além disso, busca demonstrar que a violência policial contra a população negra, pobre e periférica é uma realidade que remonta ao passado, visto que a violência observada em favelas como as do Rio de Janeiro são um processo que parte da nossa herança escravagista, se agrava durante a ditadura civil-militar brasileira e a ausência de responsabilização dos agentes por crimes cometidos contra essa população que de uma forma indireta, acabam reforçando a certeza da impunidade em operações policiais que ocorrem no presente.
Sibele Rossales é graduada em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel, 2022). Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista CAPES – Código de Financiamento 001. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória (NUPPOME) e ao grupo de pesquisa sobre Políticas de memória em unidades subnacionais: o trabalho das Comissões Estaduais da Verdade da Região Nordeste. Membro do projeto de extensão Simplificando Política da UFPel. Atua principalmente nos seguintes temas: gênero, regimes autoritários e políticas de memória.
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