A experiência de uma história vista e contada de baixo.

Estive em contato pela primeira vez com o termo história “vista e contada de baixo” a partir da leitura dos escritos da historiadora Giovana Xavier, a autora usa o termo ao tratar pesquisas feitas por mulheres negras nas quais estas mulheres analisam as suas próprias trajetórias ou de pessoas próximas a ela.2 Percebi ser exatamente uma história “vista e contada de baixo” que eu estava fazendo ao analisar a trajetória de Maria Cecília de Jesus, ou Datila, como era chamada por seus familiares.  

Datila era mulher negra, nascida em 1905, na comunidade do Cruzeiro do Rio Grande, popularmente conhecida como Desbarrancado, em Piedade do Rio Grande–MG. Ao longo dos últimos anos me debrucei sobre a análise da sua trajetória. Tal como Datila também sou uma mulher negra, nascida na comunidade do Cruzeiro do Rio Grande, além de compartilharmos a cor da pele e o lugar de origem, ela e eu também temos a mesma família. Ela era irmã da minha bisavó materna, Sebastiana.  Datila era lavadeira na fazenda de Santa Cruz, uma das muitas fazendas da região cuja origem remonta ao período escravista. Além de lavadeira, Datila era uma exímia contadora de histórias. A arte de contar histórias a levou a ser uma figura amplamente requisitada pelas crianças filhas de diferentes gerações de proprietários da fazenda de Santa Cruz. Com isso, além de lavadeira e exímia contadora de histórias, Datila também dedicou grande parte do seu tempo a essas crianças. Chegou até mesmo a ser madrinha de uma lá, contou João Bosco do Nascimento, sobrinho de Cecília, em uma entrevista realizada em meio a trajetória de pesquisa.3 

Toda essa proximidade, embebida de paternalismo, levou Datila a residir na fazenda de Santa Cruz por grande parte da vida. A mudança aconteceu na década de 1940, logo após Datila ficar viúva de um casamento arranjado pelo pai e pelo patrão. Datila permaneceu na fazenda de Santa Cruz até o início da década de 1980, quando a idade cobrou seu preço, a demanda por cuidados se tornou dispendiosa e a opção encontrada foi levá-la para o Lar das Velhinhas, um asilo em Barbacena, cidade vizinha a Piedade do Rio Grande. A vida de Datila não se estendeu no asilo. Ainda no início da década de 1980, Datila faleceu.  

Anos após a sua morte, os irmãos José Murilo de Carvalho, Ana Emília de Carvalho e Maria Selma de Carvalho, que outrora eram as crianças que requisitavam a atenção da Datila para ouvir histórias, organizaram o livro “Histórias que Cecília contava”. A obra reúne alguns dos contos narrados por Datila e um rico levantamento historiográfico sobre a sua trajetória.  

Confesso que sabia pouco sobre a Datila. Nas minhas memórias ela era a tia da minha avó que havia passado a vida inteira na fazenda de Santa Cruz. Foi em 2018 que me atentei para a sua trajetória. Esse olhar atento veio enquanto eu ainda era aluna do curso de graduação em história, na Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ, e participava do projeto de iniciação científica “Memórias do Cativeiro e da Liberdade entre os Congadeiros da Região das Vertentes”, coordenado pela professora Dra Sílvia Brügger.4 Na época, o projeto se debruçava sobre a trajetória de Claudinei Matias do Nascimento, o Capitão Prego, do terno de congado Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia, da cidade de Tiradentes, MG.  A família do capitão Prego, assim como Datila e eu, é natural de Piedade do Rio Grande. Mas, por conta de série de venturas e desventuras, termo utilizado pela historiadora Silvia Brügger, acabaram migrando pouco após a abolição da escravidão.  Enquanto o Capitão Prego faz parte do eixo familiar que optou por migrar diante a conquista da liberdade, Datila e eu fazemos parte do eixo familiar que permaneceu em Piedade do Rio Grande com relações extremamente próximas com os descendentes das antigas famílias senhoriais da região. Datila passou até mesmo a morar na fazenda de Santa Cruz. Em alguns momentos isto a levou a ser vista como uma outsider entre seus membros. Por muito tempo, acreditei que nem mesmo diante a velhice ela havia voltado para os seus pares. Isto me causava um grande incômodo. Em posse deste incômodo adentrei no terreno da pesquisa acadêmica, na tentativa de entender a trajetória de Maria Cecília de Jesus, a Datila. 

Na tentativa de entender a trajetória de Datila, acabei entrando em um terreno bastante familiar. O olhar mais atento para a trajetória da dela me permitiu perceber que a sua relação com as diferentes gerações de proprietários da fazenda de Santa Cruz foi viabilizada por conta da violência, material e simbólica, a qual toda a população negra do Brasil foi submetida. Posto fim ao cativeiro, diante a negligência do Estado em relação a população negra do Brasil, Datila, tal como grande parte de seus familiares, viram na manutenção das relações com as antigas famílias senhoriais uma estratégia de inserção social.  As relações de poder que atravessaram toda a vida de Datila não se limitaram a ela. Foram relações construídas e mantidas ao longo de gerações. Eu não escapei dessa construção. Tal como Datila, toda a minha vida foi atravessada por relações extremamente próximas com herdeiros das antigas famílias senhoriais da região de Piedade do Rio Grande. Mas eu nunca havia me atentado para o quanto essas relações eram violentas. Essa percepção veio através da análise da trajetória de Datila a partir de um viés historiográfico.  

A busca pelo entendimento da trajetória de Datila me permitiu entender como a branquitude, conceito utilizado pela psicóloga Cida Bento5, se organizou para garantir que a população negra do Brasil fosse mantida em um lugar de subalternidade mesmo após o fim da escravidão no país. Obviamente, esta tomada de consciência foi dolorosa. Mas foi isto que me fez abrir os olhos para os mecanismos de construção das relações de poder pautadas na raça. A meu ver, a percepção da construção destes mecanismos é o ponto de partida para sua desconstrução. 

Em suma, a análise da trajetória de Datila me permitiram perceber o processo de construção das estruturas de poder e subalternidade que continuam a atravessar gerações. Esse mergulho na história de Datila revelou as nuances de resistência e adaptação que marcaram sua trajetória e expôs o papel da branquitude como força mantenedora das hierarquias raciais, mesmo após a escravidão. Análises como estas são um passo para a desconstrução das relações destas poder e uma afirmação da importância de revisitar a história da população negra do Brasil com olhos críticos e empáticos. 

Referências: 

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. 1° ed. São Paulo: Companhia das Letras: 2022.  

BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua família: memórias de um congadeiro da região das Vertentes, Minas Gerais. XII Encontro Regional Sudeste de História Oral,  2017.  

JESUS, Maria Cecília de; ALVES, Maria das Dores. Histórias que Cecília contava. CARVALHO, Maria Selma de; CARVALHO, José Murilo de Carvalho; CARVALHO, Ana Emília (org.). 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.  

João Bosco Nascimento em entrevista concedida a Daniele Neves, na comunidade do Cruzeiro do Rio Grande, Piedade do Rio Grande/MG em 19/09/2020. 

NEVES, Daniele Michael Trindade. Uma análise da trajetória de Datila: Uma mulher negra em busca de estratégias de inserção social no pós-abolição em Piedade do Rio Grande – MG. Dissertação. UFJF: ICH. 2024. 

XAVIER, Giovana. História Intelectual de Mulheres Negras: um novo “território existencial” historiográfico”. Revista História Hoje, v. 11, nº 22, p. 349-365 – 2022.  


Daniele Neves

Graduada em História pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Mestre em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professora na Educação Básica SEE/MG. Pesquisadora no Grupo de Trabalho “Emancipações e pós-abolição em Minas Gerais”. Pesquisadora no projeto “Passados Presentes em Minas”. 


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