“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só atirou hoje”. É com esse ditado Iorubá que inicio minha escrita, pedindo a licença a Exu, orixá da comunicação, dos caminhos e da movimentação. Em prece aos meus ancestrais, rogo aqueles que vieram antes de mim a licença e a possibilidade de que, através desta mensagem a ser descrita no artigo, possamos refletir sobre a essência do mês de novembro, dos cultos afro-brasileiros e a sacralidade que habita nas identidades e memórias pretas hoje vivas em cada um de nós.
O provérbio apresentado seguirá como norte para a reflexão deste texto, ao qual busca-se refletir sobre as possibilidades — os cruzos — que permeiam a vida humana e, consequentemente, a história: tempo, espaço, indivíduo — “quando?”, “onde?” e “quem?”. O tempo é um dos objetos mais intrínsecos da historiografia, sendo aquele que permeia memórias, corpos, processos individuais e coletivos, ou seja, as vivências. Não é estático — e por isso não há como defini-lo em uma simples palavra: afinal, o que há de ser o tempo?
Nos saberes acadêmicos ocidentais, entendemos que o tempo é linear, uma sucessão de fatos conseguintes divididos em passado, presente e futuro. Já nos conhecimentos não-ocidentais, passado, presente e futuro não são vistos com linearidades, mas confluem entre si — e é nesta possibilidade que encontramos Exu. Orixá que habita as encruzilhadas da vida, é aquele que representa o impulso atemporal. Definir Exu é uma tarefa impossível. Com ele não há um início, meio e fim pré-estabelecidos haja visto que, o próprio, é o princípio das possibilidades, intermédio entre o visível e o invisível, celestial e humano, comunicação entre o Orun (plano espiritual) e o Aiyê (plano terreno). Transcendente dos tempos, ele é a chave que nos possibilita ir além dos olhares cânones dos saberes eurocêntricos que permeiam o academicismo porque, ao matar o pássaro hoje, com uma pedra atirada ontem, ilustra-nos como nossos atos não são casos individualizados — são reflexos e continuidades.
É Exu quem carrega o processo da história de quem luta a quase 400 anos (re)existindo pois, para a população afro-brasileira, o cotidiano é uma guerra. A pedra jogada por Exu é a defesa contra o racismo e ademais questões estruturais que sobrevoam nossa sociedade e tentam silenciar aqueles que sangraram para edificar este país e que são levados a marginalização pela concepção ocidental de organização. A partir de tal consideração, questiona-se: já se conectou com Exu e possibilitou o retorno a sensação de “humanidade” a aquele que se encontra no lugar de subalterno hoje?
No Brasil, cerca de pelo menos 3% da população pertence a algum espaço de afro-culto, seja Umbanda, Candomblé ou Xangô de Pernambuco, por exemplo. Essas manifestações religiosas, além de compartilharem raízes culturais semelhantes, possuem também a luta contra o racismo religioso como um fato diário, pois ainda que seja um país que constitucionalmente garante a liberdade religiosa, sua realidade é contrária. Tratar fé e culturas em diáspora é indissociável da temática sob os anos de colonialidade que, por um viés desumano através do tráfico de africanos para as Américas, perpetuaram essa multifacetada possibilidade cultural que constitui o país brasileiro em questão e os cultos que descendem de práticas africanas.
Em meio as essas dores que insistem fazer sangrar, as encruzilhadas seguem sendo o amparo de conforto, resistência e de axé. No som dos atabaques, nos agrados dos alguidares, nas oferendas sagradas, no cantar e soar das palmas, nas vestes brancas e as guias do pescoço que (re)nascemos, fortalecemos. Nos caminhos de Exu, na luz divina de Oxalá, na força das águas salgadas de Yemanjá, no barro da criação de Nanã, nas pipocas de cura de Obaluayê, no ferro de Ogum, nos ventos de Oyá, no fogo de Xangô, nas águas doces de Oxum, nas matas bem cuidadas por Oxóssi que (re)estabelece-se a força, na honra dos pais e mães divinos que reforçam o axé. O terreiro é a encruza, a possibilidade, o sagrado que se faz vivo em cada um de nós, e a oralidade, base primordial das religiões afro-brasileiras, é quem possibilita que o espiritual e o material estejam associados, pois “ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas” (Bâ, 2010, p. 169). Pela oralidade — que é parte sagrada de um espaço de afro-culto — o passado se faz presente, afinal a “narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado” (Sarlo, 2007, p. 24).
Exu é caminho. Centro das encruzilhadas. O mensageiro de ligação entre o mundo terreno e o espiritual. E, nas palavras de Muniz Sodré “é tanto ancestral quanto descendente — a protoforma da progenitura por excelência” (Sodré, 2017, p. 119), sendo aquele que transcende tempo e espaço e, por isso, é ele quem nos dita as novas interpretações de mundo, ou melhor, os novos caminhos a serem regidos sobre a história ao qual retomamos o protagonismo, firmes. Muito além das dores que nos marcam, somos humanizados, com o dendê que aquece nossos corações.
Como na filosofia de Exu, é preciso também retornar ao centro das encruzilhadas, no retorno ao que chamamos de “passado” — a memória traumática da migração forçada, o luto pela perda do contato físico de suas origens e suas famílias, a resistência de manter viva as raízes pela ancestralidade, as (sobre)vivências dos que conseguiram estabelecer conexões de corpo e alma pela força da identidade como os Pretos Velhos — para a construção do presente — o agora, num continuum vida e morte — e do futuro — as perspectivas de herança ancestral na luta contínua contra o racismo religioso.
Retornamos às raízes… ressignificando o presente através de uma regressão ao passado. Os conhecimentos em diáspora são possibilidades de compreender sob uma outra semiótica, ou seja, uma abertura de compreensão de mundo diferente, com concepções de tempo e espaço — alicerces da história — para além do compreendido pelo tradicionalismo do cânone colonial. A magia toma vida, a força é reestruturada por outras proporções — por vezes além das concepções humanas — e, por isso, a defesa da pluralidade brasileira e dos terreiros, espaços vivos de ancestralidade negra africana. Os terreiros e ademais cultos afro-brasileiros seguem (re)existindo: é ancestral, político e social. Espaços vem sendo ocupados, afinal a justiça que se banha no dendê não falha e é Exu o dono da rua. E quanto as encruzilhadas que você vivencia? Te confortam ou te assustam?
Referências Bibliográficas:
Bâ, Amadou Hampaté. Tradição viva. História Geral da África I: metodologia e pré-história da África. 2 ed. Brasília: UNESCO, 2010.
Sarlo, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras/Belo Horizonte: UFMG, 2007.
Sodré, Muniz. Exu inventa seu tempo. In: Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
Nathaly de Souza Silva
É umbandista, graduada em História pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), com formação complementar em Estudos Afro-latino americanos pelo Afro-Latin American Research Institute (ALARI) na Universidade de Harvard e atualmente com mestrado em andamento pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Membro do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI- Afrikas), suas pesquisas se concentram nas práticas de resistência da população afrodescendente e valorização das manifestações culturais e religiosas desses povos, com destaque nas questões de memória e ancestralidade negra.
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