11/04/2024 – Amanhã é dia das mães. Incluindo das mães crackudas, que são muitas, mas incrivelmente me assomam iguais. Jovens velhas, de shorts e mini-blusa que cobrem com um moletom nos dias mais ásperos. O cabelo é sempre um coque, uma touca, um capuz. Há um tom encardido que marca sua expressão ao empurrar carrinhos com crianças, tranqueiras e coisas catadas pelas beiras das ruas. De becos escuros e imundos elas saem diariamente à cata de sol e ar desfilando sua vida e suas mazelas pelas calçadas onde gritam com seus homens inúteis. Quando suas crias crescem elas se juntam às bêbadas cotidianas de bar e dividem com elas a tarefa de levá-las à escola onde são vistas como um fardo, as que tem um filho por ano pelo Bolsa Família, ladras maldosas e levianas do rico benefício social, das inúmeras vantagens que esse país oferece para quem vive nas suas beiras. E por falar nas bêbadas, feliz dia das mães para as pistoleiras de balcão, que nunca tem dinheiro mas sempre garantem sua cerveja, a pipoca e o pirulito dos filhos. E netos. Onde elas estão levam seus rebentos que crescem ao som de Boite Azul, Fuscão preto e 50 reais. Feliz dia das mães pras mães atípicas, que quanto mais pobres mais humilhadas, e que tem na escola uma das únicas políticas públicas de acolhimento à seus filhos, um tempo para um banho, um cochilo, um choro mais longo e indignado. E que para acionar esse ínfimo direito são submetidas a todo tipo de constrangimento e, não podendo sequer ousar ter outros filhos sob o risco de serem chamadas de irresponsáveis, loucas ou estúpidas. Feliz também deveria ser o Dia das Mães que enlouquecem e que, de dentro dessa loucura, precisam provar que seu amor não é menor nem sua maternidade inferior. E que buscam todos os dias mecanismos, dentre os pífios que nosso mundo oferece, para não se perder por completo na espiral dessa insanidade tratada apenas pelo viés da doença e da anestesia. Deveriam também estar nessa data as mães que enterraram seus filhos, evento tão terrível que nossa gramática não criou um termo para nomeá-las. Como chamar mães de colo vazio? Aquelas que tem que fingir que eles não existiram para que sua tristeza não constranja a felicidade que a maternidade deve exalar? Também feliz quero que seja o dia das mães que se arrependeram da maternidade e que contam nos dedos o dia de se livrar desse fardo, bem como aquelas que descobriram, da pior forma, que não existe método contraceptivo 100% eficaz e que há homens ruins que tomam nosso corpo sem nossa vontade. Feliz dia das mães pras mães que querem amor, safadeza e parceria e que são tratadas como vagabundas apenas por desejarem ser desejadas. Feliz dia das mães num mundo em que ser feliz, para uma mulher, ainda é uma batalha de vitórias sazonais.

18/03/2024 – O moço, possuído por forças sinistras, tava firme na disposição de entrar no ônibus. Mas ele tinha planos ocultos. Megamente queria também acomodar seu corpo de segunda feira num banco, justo domínio que deveria lhe ser assegurado pelos seus R$ 3,75. Pero,  o mundo é um lugar mau. Havia muitos para uma única vaga. Ele não esmoreceu. Atropelou a senhorinha, acotovelou a jovem mãe e se rebento, arrastou parte da minha sacolinha de plástico e, sem pejo nenhum, se enfiou no canto que havia mirado da janela, ignorando esnobe as bufadas indignadas em seu trajeto de javali. Devidamente acomodado suspirou exitoso, pleno em sua vitória que lhe dava o direito de olhar por cima os pobre de pé que se acotovelavam a sua volta. Quatro pontos depois começou a chover. Ele se ergueu majestoso para fechar a janela. Em vão. Trocador anuncia: “tá travada irmão, fecha não”. Ele ensaia um protesto solo. Em vão. Oprimidos são ágeis em odiar iguais que os oprimem. Só resta a ele se resignar e deixar seu trono para se juntar ao campesinato que ele recém tripudiara. “Moço” . Chama a doninha cujas pernas pulara para sentar-se no canto. “Sua calça tá toda molhada”. Nosso anti-herói passa a mão, testando a umidade enquanto chega à sua consciência o porquê do banco ter lhe esperado. Bufa, derrotado pela força acachapante da miséria que só o capitalismo pode nos proporcionar. A doninha se compadece. Oferece para carregar a mochila dele. Ele aceita, quase envergonhado. Concluo filosófica, enquanto minha sacolinha termina de rasgar a outra alça, que a vida do pobre é um fio constante entre a expectativa, o sonho e a humilhação.

23/12/2023 – Vendedores de porta em porta eram o shopping da minha infância. Avon, Stanley, Hiroshima, Hermes, Tuppeware eram catálogos vitrines de bugigangas maravilhosas. Mas havia ainda os vendedores de roupa de cama: carros abarrotados que o porta-mala não fechava e de onde escorriam sonhos suburbanos em pacotes transparentes. Numa periferia pobre, de casas degradadas, cômodos sem porta (a gente usava cortinas pra dar um senso de privacidade), janelas e portas de madeira, paredes pintadas de cal, chão de vermelhão na cozinha, taco na sala e nos quartos (embora em muitas o chão fosse de terra batida) a beleza vinha de uma limpeza quase obsessiva, panelas ariadas até virarem um espelho, toalhas de mesa com cavalos correndo livres por um campo onírico e da roupa de cama em temas florais, sempre rigidamente esticada. E todo final de ano a colcha de chenile, paga em infinitas prestações, era retirada da sua embalagem plástica para enfeitar o quarto na passagem do Natal. Minha mãe não gostava de festas, não bebia, não dançava. Nos últimos anos ela passava o Natal sentadinha vendo TV, assistia as missas, esperava dar meia noite e desejava feliz Natal para a família antes de se recolher. Mas fazia algum tempo que ela não esticava sua colcha de chenile. Esse ano e daqui pra frente, todos os anos, essa colcha vai estar assim, esticadinha na minha cama . Feliz Natal mãe.

28/04/2023 – Quem convive comigo sabe que um traço que me resume bem é implicante. Implico com quase tudo à minha volta e venho fazendo um esforço danado pra não virar um meme que resmunga. Mas gente, esbarro numa dificuldade visceral com os modismos desarrazoados que me coçam a levantar da mesa e dar buenas noches, até nunca mais. Potente, virge santa, é o primeiro da lista. Potente virou o elogio mais chocho que já me arrumaram praquilo que não se quer refletir, problematizar. Aí tu rala igual uma excomungada pra produzir um trabalho, um texto, uma apresentação e tudo que as pessoas reverberam é: que trabalho potente! Exu gargalha de deboche mediante a cena. Logo após vem gratidão. Cria direta da positividade tóxica only good vibes e da ideia que podemos nos livrar e tudo o que é ruim usando apenas a força da mente, gratidão é a cara do capitalismo com florais de bach. Somos ferrados mas com alegria e ao som de Enya. Sair da zona de conforto é uma praga que quando acho que me livrei alguém me dá duas sapatadas com ela na cara. Pessoas que respiram ouçam com atenção: minha zona de conforto foi construída com pedaços do meu sangue, da minha pele e da minha sanidade, ela é fofa, tem espumante e bixus que não passam fome nem sede. Eu teria que ser muito besta pra sair dela só porque uma camisa, ou tu, mandaram. E uma que, por força do campo de pesquisa, uso uncado, mas estou a especular fórmula outra: resistência. Essa estou em elaboração pra uma outra semântica porque oh, tem hora que resistimos nem ao preço do ovo.  

14/02/2023 – Saí de casa às 08:30 da manhã. Retornei as 19:30. “E daí? Monte de gente faz isso uai! Todo dia”. Olha, falar proceis. A pessoa que faz isso todo dia e precisa circular de ônibus devia poder usar isso no Lattes, em audiência na vara penal, como referência no curriculum. Depois de uma maratona: dentista (fofa, no horário e que resolve) fui pra minha dermato 2. Sim, tenho duas dermatologistas. Tenho pra mim que se fizesse medicina essa seria minha especialidade. Melhor que há: não mata, nem cura. Daí tenho duas pra sacudir e juntar e ver se sai um acerto. Uma hora de atraso dela. Xingo tanto qdo entro que ela esquece a guia do meu exame. Vai fazer. Erra. Refaz. Saio. Vou almoçar: uma dona pergunta se pode sentar comigo. Craro. A dona disgrama a falar que não pode ficar em pé porque não tem as pernas firmes de quem tá acostumada a trabalhar em pé. “Sentar pode senhora, falar comigo não”. No finalzinho revejo um velho amigo. Nem tudo eh sofrência. Levo meu pedaço de pele pro laboratório. A senhora do guichê do lado avisa que trouxe o preventivo: sujeito com ela faz piadinha: “se perder é só tirar mais, tem muito de onde veio esse, neh moça?” A recepcionista olha firme pra ele até ele murchar. Foi bunito de ver. Resto da tarde retocar tatoo. Saio. Chuva de lavar o inferno e enxaguar. 60 dilmas de uber. Pero no hay coches. Nem money . Ponto de ônibus é a sentença da pobre que calça rasteirinha. Clássico: 57 minutos de espera. Quase chegando em casa a rua fechada por dois carros um de cada lado. Só buzinar e tirar neh não? Nunca. A periferia tem um jeito único de lidar com a confusão: aumentando. Bate boca, trico-trico: “ônibus não é de borracha! Qdo parei tinha ninguém na rua. Sabe que passa ônibus e o ixcumungado para pra que? Bunitao neh? Tá em casa sequinho e nois aqui doido pra chegar em casa? Pena que a enxurrada não levou!” Eu juro, não há, na indústria farmacêutica hoje, uma medicação que dê conta de cuidar da saúde mental de uma pessoa que faz isso todo dia. Não há. Tem mais de uma hora que cheguei em casa e ainda estou sob efeito do ódio.  

31/12/2022  – Ter fé é uma dádiva. Um presente. É uma construção que a gente faz todo dia, todo santo dia em prol da nossa saúde mental e do nosso direito de existir. 2023 tá aí na porta marcando o fôlego de mais um recomeço. Então, com toda fé que tenho, peço a Oxum que lhe traga amor próprio, numa forma tão bem acabada que na primeira vez que tentarem te fazer de besta ela desça pesado com sua espada sobre a desgraça que te ameaça e sobre o corpo que a porta. Que Oxossi lhe traga abundância real, de comida boa e saudável que cure seu corpo e seu espírito. Que Xangô lhe dê sabedoria para reconhecer seus inimigos e as batalhas necessárias, poupando suas forças de combates inúteis. Que Ogum lhe oportunize saberes e inventividades que mantenham sua mente arguta e sua cabeça produtiva. Que Nanã lhe ofereça memória de onde veio e sabedoria para honrar suas raízes e projetar sua identidade. Que Ossaim lhe ensine a ser cura , para si e para os outros e que seu corpo seja templo de afetos acolhedores e vivências plenas de boas energias que espantem pra longe o fantasma das doenças que atormentam o espírito e a carne. Que Omulu lhe encha da sabedoria para que saiba deixar as coisas morrerem pois tudo que vaga sobre a terra tem seu tempo de existência. E que Exu lhe traga discernimento para por tudo que o sagrado traz para você no devido lugar da sua trajetória. Que sua fé seja seu pilar e sua escada . E que ela te permita ser feliz e levar felicidade a vida de outras pessoas. Amém!

29/01/2021  – Sobre minha estranha fixação pelo Nego do Borel. E a culpa disso, certeza, é do Tiago. Tiago foi um dos meus maiores fracassos como educadora. Na primeira semana do ano letivo eu brincava que Tiago podia ser meu filho: debochado, irreverente, piadista, incansável e inconteste nas rodas do recreio. No segundo mês de aula eu já fazia meu trajeto rezando para que Tiago perdesse a hora e não conseguisse entrar. A medida que o ano foi se desenrolando Tiago foi o motivo do travamento do meu maxilar, do meu sofrimento em acordar, de boa parte das minhas angústias em preparar aulas que considerava boas e que sabia que ele não me permitiria desenvolver. Por que era impossível dar aula se Tiago não permitisse. Ele era vários dentro de um corpo preto, magricela, de uma  altura que destoava dos seus 13 anos e me obrigava a olhar pra cima pra falar com ele, signo máximo da minha humilhação. Tiago uma vez deu um soco no meio da cara de seu amigo mais chegado porque ele agarrou uma menina à força na saída. Com a mesma mão Tiago deu um pescoção num “viadinho” que, na sua narrativa, encostou nele no ônibus. Tiago me  proporcionou nos seus dias de boa vontade, as melhores definições sobre revolução Francesa, com comparações inéditas com a Revolta Da Malês, usando a mesma voz contida com a qual xingava as meninas gordas no intervalo, dizendo, enquanto gargalhava, que era melhor elas deixarem a comida pra ele. Tiago entrou na frente de um carro para salvar uma gata com os filhotes e convenceu a avó a somar mais cinco bichos num quintal já ocupado por três cachorros, dois gatos e uma galinha cega e velha que ninguém podia por a mão sob o risco da fúria dele. Tiago ficava com os olhos cheios d’agua quando eu falava de racismo e escravidão, gostava de Racionais e ficou um tempão me adorando porque lhe apresentei Facção Central. E Tiago  debochava do cabelo das meninas pretas sempre que pudesse. Zombava das gordas, imitava as gay. Quando Camila entrou na escola já com o ano correndo Tiago parecia estar possuído. Carregava caderno, esperava na saída, passou a se preocupar (por curtíssimo tempo) com as notas e ainda, que sob a reprovação do pai (um branco de branquice duvidosa que no dia da matricula ao ser perguntado pela cor da menina trovejou Branca, lógico. Eu sou branco, ela também!)  conseguiu engatar um namoro. Camila era uma menina comum, destacada naquele ambiente periférico pela sua brancura recaiada, uns olhos aguados e dentes projetados para frente que lhe davam um ar de permanente desvínculo com a realidade. O suficiente para ser logo eleita  a menina mais bonita da escola. Tiago fazia questão de leva-la em casa todo dia, sob um sol a pico, porque as meninas da escola queriam bater nela. Numa festa de rua Tiago deixou Camila em casa, as nove em ponto como combinado com o pai e voltou para ficar com Melissa, conforme combinado com Melissa, que ficava com Tiago desde os 12 anos e queira bater em Camila. Melissa com 12 anos parecia uma Naomi Campbell, aos 13 já era dez vezes mais bonita. Tiago debochava do seu cabelo permanentemente molhado e, depois que deixava Camila em casa passava a tarde na casa de Melissa. Uma vez perguntei o que faziam toda tarde. Ela riu rasgado: nada de errado não fesssora. Ele me ajuda a limpar a casa  a gente fica ouvindo os discos da minha mãe, pode perguntar minha avó! Todo mundo sabia desse arranjo. Menos Camila. Quando Camila soube quis morrer, tomando duas cartelas de dipirona. Desmaiou no banheiro da escola. Pai chamado, mãe em prantos, Tiago mudo. Melissa festiva, mas contida. Pai queria dar queixa, chamar polícia, aquele marginal quase mata minha filha. Deu em nada. Namoro encerrado, Camila proibida de falar com aquele moleque que nunca valeu nada, passou a ser escoltada pela mãe na entrada e na saída. E continuou ficando com Tiago em toda oportunidade que tivesse. Tiago foi reprovado. Camila aprovada pelo conselho apesar das notas baixíssimas e da infrequência. Tinha sofrido muito naquele ano. Melissa tinha notas altíssimas, as melhores da turma. Tiago foi encaminhado pro noturno, melhor para ele, segundo a fala do Conselho. Melissa seguiu com suas melhores notas e Camila teve acesso facilitado a um serviço gratuito de terapia para superar o trauma que quase acabou com sua  precoce vida. Tenho muitas histórias sobre Tiagos. E sobre Negos vários que na minha cabeça serão sempre Tiagos.

14/03/2021 – São quase três da tarde. Tô desde de manhã pondo minha casa em “ordem”. Pelo de cachorro, uma ajeitada nos livros, espanada nos banheiros. Como diz minha mãe fazendo só o caminho do padre. Nesse intervalo ouço Emílio Santiago, dou uma olhada no zap, belisco um queijo coalho delicioso. Sentei várias vezes. Li dois textinhos sobre pandemia, doidice e pilantragens. Reguei as plantas. E agora tô aqui na minha sala, escrevendo enquanto rezo, e peço a vocês que também o façam, pelas milhares de mulheres que estão em pé:  limpando, cozinhando, lavando e arrumando sem brecha de descanso. Porque não podem. Não lhes é permitido: maridos, pais, cunhados, sogros e filhos não deixam. Vigiadas pelas amigas, sogras e cunhadas que chegam nas suas casas como se fossem da vigilância sanitária e que fazem que todo seu sucesso esteja vinculado a uma casa impecavelmente limpa, um dos muitos e ásperos ranços da senzala que o brasileiro carrega no peito e no olhar. Porque nessa ordem legitimada pra se ter uma casa impecavelmente limpa só escravizando  um corpo feminino: seja o seu ou de outra. Um prato abandonado, um copo sujo na pia, uma manchinha no vidro desemboca num mar de “não repara a bagunça”, e tudo se apaga e se reduz ali naquele “fracasso” de quem ainda nem almoçou pra sujar o prato e mal bebeu água pra ter precisado do copo. Rezem por elas. Porque amanhã tem trabalho na rua, home office, criança em casa. E ainda tem o lixo pra por pra fora.

01/02/2021 – Vou começar bem pseudo intelectual de buteco copo sujo que vende Heineken o zoi da cara: EU não vejo BBB. Uai Giovana ? Porque ? Se acha melhor, né…neh não. Quer dizer foi, mas né mais não. É porque fico nervosa, e dá vontade de meter a mão na cara dosotro. E pra despertar essa vontade eu já tenho a minha vida mesmo. Esse, em especial, eu nem tenho saúde mental pra ver. Esse calor da caldeira do purgatório ajustada na temperatura de quem aguarda os falsos profetas, a pandemia, o presidente e as ligações de são Paulo são os 04 cavaleiros que mal tenho condições de lidar nesse momento. Mais gatilhos? No, gracias. MAS, como nesse mundo cê pode nem ver e ainda assim pitacar eu vou por aí na mesa minhas análises diretas de Santa Luzia. Fundos. Primeiro sobre a com k. Começo nostálgica dizendo que sou do tempo que (quase) ninguém queria ser preto e essa jornada era sempre conduzida por alguém que já tinha passado pela estrada e ajudava a gente a desviar dos buracos. A militância (que de uns dois anos pra cá troquei por ativismo. Porque militar é serviço obrigatório e que se se faz sob hierarquias e ativismo é desejo de movimento, de mudança, feito a partir de expressões e linguagens várias, de forma bem simplizinha e didática pra não perder o rumo da prosa) era, e é, um processo de ser acordada de um estágio de anestesia que se não de todo agradável, era elucidador. Nessa via pessoas com experiência, timer, histórias e parcerias nos conduziam, baseadas em suas vivências e saberes, a um mundo de novas simbologias sobre nossas identidades e, em cada uma dessas trocas a gente saía mais sabida, mais sagaz, mais atenta às miudezas que corroem nossas possibilidades e portanto,  mais fortes. Não tinha lacre, nem tombação, nem seguidores ávidos por novas frases de impacto. Era uma troca generosa, por vezes áspera e dolorosa, de quem tinha vivências e as mediava de forma didaticamente produtiva por querer de fato que a gente rompesse os grilhões. Conheço MUITA gente que está aí hoje se autodefinindo como ativista, produzindo conteúdos, postando fotão nas redes e chorando com Amarelo que endeusa a luta de famosos mas se recusa a falar a verdade: que quem segurou sua cabeça pra direção certa foi a professora da escola pública, a enfermeira do postinho ou a amiga que até hoje te atende na hora do perrengue. Ceis tão idolatrando gente que nunca escreveu nada, nunca produziu nada, nunca sentou coceis e ajudou a construir uma visão bacana que te explicasse porque seu boy só te liga de madrugada. Ceis tão idolatrando gente porque no capital não basta mudar sua vida, tem que sair bem nas fotos. E ninguém quer dar moral pra professora que te apresentou racismo estrutural muito antes de Silvio, porque a professora não publicou nenhum livro, não fez vídeo e nem atualiza todo dia o stories com frases do tipo: “a vida é uma armadilha pros fracos. Mas eu sigo com os fortes….” Na ótica do capital está em jogo quanto dá para lucrar com o racismo recreativo maquiado de equidade. e faz isso sabendo de uma coisa que deixaram vazar: que ceis tão vendo força no lugar errado, 220V onde no máximo tem é lampião de querosene. O ativismo foi engolido pelo capital e vocês são o couvert…

21/11/2020 – Eu também queria por fogo num Carrefour, num simbólico ato de vomitar  minha raiva. Sueli Carneiro quebrou seu cartão Carrefour e postou nas redes sociais. Belíssimo. Atos de resistência são assim, belíssimos. Mas hoje eu quero falar da dona X, uma ex aluna minha que queria uma máquina de lavar. Lá pelo início do ano descendo o calçadão cruzei com ela saindo de uma casas Bahia da vida. Brinquei: aí, redecorando a casa. Besta, eu sei. Dona X vive uma vida bem apertada mas minha boca tem vontade própria. Ela riu macio, naquele jeito de tia que gosta da gente. Não minha filha, tô aqui vendo se compro uma máquina de lavar. A minha estragou e tem quase um mês que só faço lavar roupa. Muita criança neh? E me mostrou, feliz os preços que havia visto e a prestação que cabia no seu bolso. Ela pagaria  o dobro e mais meio por uma máquina em 24 prestações. Perguntei se tinha ido ao Carrefour ver se, por lá, com o cartão da loja não saáa mais barato e sem anuidade. Não, não tinha ido. Peguei o contato dela, ajudei a aprovar a proposta e ela financiou sua máquina em 18 x “sem juros” e por um preço menor que havia visto. Dona X eh uma mulher preta que vem de uma longeva linhagem de trabalhadoras domesticas e não cabia em si de felicidade da última vez que nos falamos pela sua máquina, pelo emprego da filha numa conservadora de prédio e por ter um tempinho e dinheiro para fazer as unhas de vez em quando. Eu tenho cartão Carrefour. Fiquei um tempo sem usa lo pós linchamento da cachorra. Mas voltei a usar. Meus pais tem 80 anos e se precisar de uma medicação barata e parcelada é na farmácia de lá que vou comprar em 10 x. ” Sem juros” . Posso parar de comprar minhas orquídeas, meu peixe e quiçá meus produtos de limpeza. Mas não vou quebrar meu cartão Carrefour porque minha condição de classe não me dá possibilidades de fazer isso sem que isso cause um impacto direto no fornecimento de medicação da minha mãe hipertensa e insulínica. Atos simbólicos são belíssimos e necessários. Mas tem quer ser compreendidos à luz das condições de enfrentamento de quem os protagoniza. Não cumplicio só com o Carrefour, cumplicio com todo o sistema capitalista que condena dona X a um tanque permanente ou a uma dívida extorsiva. Prometo a vocês que vou me esforçar pra abrir mão das minhas orquídeas e do meu peixe. Mas se precisar de algo para manutenção do meu bem estar e da minha família e lá for o local que terei condições de comprar, eh lá que será. Nossas condições de boicote e enfrentamento são várias e diversas, atravessadas pelas nossas possibilidades de classe e território. E sob o risco do cancelamento digo tranquilamente, que uso as que alcanço e posso. Podem não ser suficientes para vocês. Mas dona X entenderia nada se me visse postando uma foto do meu cartão quebrado. Atos simbólicos não podem (só) ser performance. Precisam estar acompanhados de uma efetiva reflexão sobre as diferentes categorias de opressões que se escondem sob as mantas do capital e das geografias das possibilidades.

13/04/2020 – Quatro homens negros, muito bem vestidos, ganharam o mundo em campanhas, memes e vídeos para incentivar as pessoas a ficar em casa durante a quarentena. Para quem está por fora vai um resuminho: as fotos são de 04 dançarinos de funeral ganenses, profissionais contratados para homenagear o morto e honrar sua família e as imagens são de um documentário gravado em 2017. O formato não é uma exclusividade de Gana. Diversos países africanos tratam a morte e seus desdobramentos como um momento de celebração da vida, de quem se foi, de quem ficou.  Por isso a festa, a dança, a alegria. Bonito né? Deveria ser. Mas sob a nossa ótica ocidental a morte é algo assustador, tenebroso, doído. A ela associamos tudo de ruim, inclusive nas imagens que usamos para representa-la e para advertir as pessoas sobre sua iminência. Dito isso voltemos aos 04 dançarinos. Rituais de morte culturalmente diferenciados existem pelo mundo afora, festas, cremações, mumificações, exposições do cadáver, consumo das cinzas, todas diferentes de nosso padrões que se listados por outra cultura também soariam estranhos (passar a noite olhando um corpo para chorar na hora em que ele é enterrado).  Já de cara fica explícita a facilidade que uma galera tem em fazer piadas etnocêntricas: o fato de ser alegre em nada se relaciona com o cômico e não, o objetivo não é te divertir cara pálida.  Mas a escolha desses 04 homens pretos para assustar as pessoas diz muito mais sobre nós do que sobre Gana. Quatro vikings louros com tochas na mão e uma pira ao fundo seriam sedutores e levariam o “cunho pedagógico” ralo abaixo. Logo apareceriam candidates a ir com eles. Mas ninguém quer ir com 04 homens pretos, muito menos dançar com eles.  Porque na ótica do lado de cá corpos pretos não são boa companhia pra nada, muito menos pra sua última viagem.

07/05/2021 – Domingo tem dia das mães, todo ano tem: segundo domingo de maio é infalível: dia das mães. Em 03 de maio de 1932 Vargas assinou o decreto e fez do dia das mães um dia de: mãe, isso, no singular. A condição de mãe é presa a uma condição de filho: mães são mães porque filhos lhe colocaram nesse lugar e onde quer que estejam seguem mães desses filhos que as fizeram mães. Pai é outra história, em agosto volto nela. Quando Vargas assinou o decreto esqueceu de por um adendo nele: de que mães que tivessem filhos e virassem mães seguissem mães COM seus filhos. Porque dá pra ser mãe com filho e sem filho. O domingo é para mães na primeira condição. Aqui, no meu high society byperifa, costumam ser atravessados por almoços, uns amorosos, outros tensos. Uns caóticos, outros formais. Uns insanos outros ritualísticos marcando um dia em que mães são saudadas por suas crias entre abraços, presentes constrangedores e netos entediados. Pautas como pensões atrasadas, disputa da casa, a vagabunda que você carrega pra baixo e pra cima agora e que vai sim ficar no carro porque não sou obrigada a ver a fuça dela se ocultam num sorriso amarelo e um pacote de cores vivas. É emocionante. Certa estou das variações regionais do tema, das infinitas tonalidades da maternidade brasileira e de como elas tem, nesse dia, a mesma intensidade dolorosa da cacetada do mindinho na quina da parede: a dor explode e vai diminuindo enquanto a gente crê que a cura vem dos palavrões que saem da nossa boca já que quanto mais cabeludos mais rápido a dor se vai. Porque domingo também é o dia em que as mães imperfeitas são lembradas das misérias da maternidade: a fome, a doença, a impossibilidade do controle, o fracasso filial, o desamor, a derrota. Mas domingo não se fala disso porque o feriado não é para as derrotadas: mães que falham não cabem na propaganda, nem tampouco seus filhos imperfeitos. Vargas não criou uma efeméride para que mães exibissem filhos imperfeitos. Vargas tinha mais o que fazer. Como Vargas esqueceu do adendo que obrigasse que em todos os dias das mães, estar com seu filho fosse condição sine qua non para que as mães ganhassem pacotes coloridos, no domingo também entram, mas pela porta dos fundos, as mães quebradas. Essas chegam ao domingo com o colo ainda morno, mas vazio. Nessa viagem embarcaram a pouco: 13, 19, 15, 22 anos.  Se a gente conseguisse reuni-las todas tenho certeza que seu lamento chegaria até ou ouvidos de Dandara, de Zumbi, até os porões do primeiro tumbeiro.

23/11/2021 – Avenida Santa luzia. Vinte pras sete da manhã. Doninha bem Jane fonda: Legging rosa, blusa amarela, tênis vermelho, viseira combinando com tênis, máscara combinado com a legging. Naquele passinho obstinado de velhinho que muito anda e pouco percorre. Sinal fecha. Ela põe o pé na pista, motoqueiro avança o sinal e quase antecipa o dia dela no tribunal da vida. Ela solta uma sequência de filho da, seu arrom…, Barbeiro, desalmado, vai matar sua mãe , excomungado( acho q esse fui eu) . Desopilada, abre a pochete que não combina com nada, troca a máscara. Me percebe olhando fixo, entre o susto e o encantamento,  mediante seu vasto vocabulário de desacato.  Sorri: “e pra você desejo um dia de bençãos viu minha filha”. Amém!, respondo.

28/03/2021 – Passando aqui e vendo uns debates sobre Xuxa , veganos e a naturalização da morte de gente para poupar animais. Quando era eu era criança quase todas as famílias da minha vizinhança criavam galinhas. Algumas também tinham porcos . O dia de matar porco era um evento, uma festa. O porco era todo dividido e todo mundo que ajudava na engorda recebia sua parcela de carne. O restante ia pra gordura, pra encher marmitas por um longo tempo . As galinhas eram a certeza do ovo em tempos de pouca fartura e muito trabalho. Raras eram as idas a açougues, inexistentes os churrascos. Ainda que, por um salto econômico geracional atravessado por um breve barateamento da carne, tenhamos vivido tempos de churrascada e fartura a carne ainda é um artigo de luxo na maioria das mesas pobres brasileiras. O frango e o ovo sim reinam onipresentes, misto de praticidade e orçamento curto pra uma gente que não tem energia , nem tempo para dedicar mais suor ao árduo trabalho domestico. O que nos leva a mulheres pretas: essas que como já disse tem a fome como fantasma e que vivem exaustas do trabalho na rua e em casa. Essas que se orgulham de por a carne na mesa, símbolo de fartura, saúde e, porque não, não fracasso. Parar de comer carne implica em pesquisa, trabalho, tempo e energia que a maioria das mulheres pretas não tem. O que nos leva ao racismo de Xuxa. Sim, porque o problema na fala de Xuxa não se liga ao veganismo. Ângela Davis é vegana. Mas Ângela não hierarquiza vidas. Ângela sabe quem está nas prisões, e como a maioria vai parar lá. Xuxa deveria, mas não sabe. E não se importa. Xuxa é o ícone máximo do privilégio branco que acha que venceu porque se esforçou. Xuxa é magra, loira , de olhos claros mas acha que venceu porque se esforçou porque tem talento. Xuxa não tem talento: ela é produto da colonização intelectual que dá a brancos uma identidade vencedora e os reifica ao panteão do sagrado por serem o que são: brancos. Xuxa é uma invenção. Poderia ser Xaxa, ou Lola. É Xuxa. Uma entidade branca num país escravocrata. Agora juntemos minha infância, Xuxa e Ângela Davis: o problema da fala de Xuxa é desconhecer gente preta e pobre ( como muitos veganos brancos que são pessoas terríveis por serem racistas e não por serem veganos). O problema da carne, das vidas, de comer bichos faz parte das entranhas do capital; não se discute veganismo ou vegetarianismo sem se discutir políticas públicas, segurança alimentar e saúde coletiva. Não é possível falar disso sem refletir sobre como o capital, renda, poder de compra e exploração da classe trabalhadora ( que no Brasil tem sua maior expressão nas mulheres negras, mastigadas e trituradas todos os dias). Ângela é vegana e jamais falaria o que Xuxa falou. Porque Ângela sabe quem seria usado como cobaia nesses testes. Ângela segue vegana. Meus pais cresceram criando porcos e sempre consumiram pouquíssima carne: minha mãe passa semana comendo apenas legumes, verduras e arroz. Ser vegano não condena ninguém automaticamente, não redime ninguém automaticamente. Hierarquizar vidas sim. E colocar isso como bandeira de luta faz de Xuxa uma pessoa que é racista. E que é vegana. O problema é uma questão de raça . E de classe. Mas Xuxa seguiria racista mesmo se não fosse vegana. Há veganos pretos como Ângela que sabem disso. Veganos e carnívoros brancos que concordaram com ela são a síntese do pacto narcísico da branquitude: se acham superiores por suas escolhas e acreditam que vidas tem valor hétero atribuído. Por eles. O problema não é ser vegano: o problema é o usar o veganismo para justificar políticas de extermínio.


Giovana de Carvalho Castro

Giovana de Carvalho Castro é filha de Verônica e Efigênio. Historiadora preta e periférica adora ver o mundo que corre pelas ruas dessa cidade atlântica repleta de gente preta que carrega um mundo de histórias em seus corpos e memórias.


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Para se destacar em nossa plataforma, você pode escolher de uma a quatro edições do programa de parceria Tramando. Isso significa que todas as publicações contidas nas edições selecionadas irão destacar aqui a sua marca, logo após cada texto e exposição. Os preços variaram de R$ 40,00 a R$ 100.

Basta entrar em contato conosco pelo WhatsApp (32) 98452-3839 ou diretamente na nossa página do Instagram para adquirir seu espaço!

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