APRESENTAÇÃO DOSSIÊ — Uma trama negra de ideias: plurais, amplas e coexistentes reflexões sobre as populações negras.
Lançando luz sobre novembro, como fincou-se o acordo nacional a partir da Lei n.º 12.519, de 10 de novembro de 2011, o presente dossiê decidiu por escurecer algumas questões. Em uma profusão de ideias do que se fazer em novembro e que envolvesse a população negra, idealizei um dossiê que juntasse a maior parte de gente negra do meu convívio e visibilizasse suas movimentações nessas negras terras. Entre muitas coisas a serem ditas sobre o 20 de novembro, me pareceu muito mais lógico utilizar a data como motor propulsor das ideias relacionadas a ela do que uma mormente âncora para as discussões aqui ventiladas, tendo certeza que entre as plurais vivências da população negra brasileira surgiriam os mais diversos trabalhos a compor o dossiê.
Com 14 pessoas contribuindo com a presente edição, alcançamos amplas temáticas que acabam dialogando entre si, expressando o que temos de mais caro, a nossa pluralidade. Desde os assuntos que são feitos por nós, os que nos atingem, os que dialogam com a nossa comunidade ou que estamos inseridos. Plural. E me pareceu caro falar dessa pluralidade, uma vez que as amarras do racismo nos engloba e homogeniza em ‘população negra’, quase que num bloco monolítico a se mexer sem destoantes andanças. Dentre as conceituações sociológicas que nos englobam, ‘Populações Negras’ no plural talvez nos sirva melhor e, numa data específica a nós, um local para mostrar nossas individualidades coexistentes também nos serve bem.
Esse dossiê acabou se formando para aquelas reflexões que nos juntam ou nos distanciam, que nos mostram a unicidade e, também, a diferença da nossa vida em marcha, por sua vez, coletiva, que forma aquilo que temos de mais parecido e diferente: trajetórias negras. Movimentos, instituições, corpo civil, as 20,6 milhões de pessoas autodeclaradas negras no país e as tantas outras milhões no mundo, com diferentes crenças, tradições, culturas, jeitos, corpos, profissões, vidas e modos de viver.
Com 7 contribuições impulsionadas por mulheres negras, este dossiê demonstra o poder transformador da ação dessas mulheres. A frase de Angela Davis,“quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, se manifesta ao longo das páginas, onde a maioria das autoras compartilha suas experiências únicas, mostrando como suas lutas e conquistas reverberam em toda a sociedade.
Entre os textos dessas mulheres negras, temos Giovana Castro, com duas belíssimas contribuições que muito reverberaram em quem vos escreve. Os textos da Giovana são, com toda certeza que tenho no mundo, o que vem me elucidado os caminhos que percorro, quase como se, la do seu quintal, no Santa Luzia, ela gritasse e eu escutasse dentro da minha casa, no São Pedro, seus conselhos e advertências. Escutá-la, ou lê-la, onde quer que for, sempre é um acalento às mentes que se encontram frias a vida, num sentido geral mas, para o meu caso, as mentes que às vezes se veem esfriadas pelas demandas de uma academia muito branca que ainda não entendeu nada de História. Suas palavras efervescem o sangue que corre pelo corpo e faz dele ressurgir a cor e a vida para continuar se movendo. Em um texto sobre sua própria trajetória, desde a primeira infância, seu contato com a televisão e os personagens negros, ou enquanto professora de História nas escolas de Juiz de Fora e enquanto graduanda na Universidade Federal da mesma cidade, ela consegue mobilizar suas formas de ver o mundo e querer mudá-lo, invertê-lo e vê-lo de uma forma outra que as pessoas em sua volta, em sua maioria branca, disseram que era impossível fazer. Ela mostrou que é bem possível sim. E é possível porque, desde sempre, ela estava a espiar os sujeitos em sua volta, em sua maioria negros, mostrando possibilidades outras de viver e ser no mundo.
Em outra contribuição, e em dual movimentação conjunta, Jessica e Juliana, irmãs, num movimento de fazer e refazer uma a outra, se juntam para escrever sobre o elo não-consanguíneo que as une. De mãos dadas como Bibiana e Belonísia, ambas utilizam em uníssono sua língua/letra para falar daquilo que é caro a ambas, a educação. Mostrando a luta que os muitos movimentos negros fizeram por uma noção ampliada de educação, o texto das irmãs mostra que grande parte do que temos hoje, na legislação vigente sobre a educação e de políticas antirracistas, vem da movimentação do século XX daqueles que, antes de nós, lutaram por uma melhor integração do negro na sociedade. O significado do 20 de novembro é também fruto dessas lutas.
Daniele Neves, ao escrever sobre Datila, mostra também a luta diária pela visibilidade das mulheres negras no pós-abolição. A forma como Daniele remonta os passos da pesquisa sobre Datila, mostra a proximidade da autora com sua companheira de investigação, evidenciando a construção coletiva do conhecimento e a importância das relações interpessoais na produção acadêmica. A colaboração entre as duas se manifesta na forma como as vozes de Datila e de sua companheira se entrelaçam na narrativa, desafiando a visão tradicional da História como um relato linear e objetivo. Ao receber o texto de Daniele, me vi, novamente, lendo um texto escrito a quatro mãos.
Assim como Daniele Neves, Fabrizia Santana, em sua contribuição a esse dossiê, resgatou a trajetória de Guerreiro Ramos, um pensador negro silenciado pela academia. Sua pesquisa buscou lançar luz a trajetória desse homem que a encontrou, e por ela foi encontrado, nas andanças acadêmicas da vida, na tentativa de conseguir construir um novo imaginário historiográfico para essa mente que ficou escanteada durante muito tempo dos círculos intelectuais brasileiros. A interação entre passado e presente, evidente na pesquisa de ambas, demonstra que a história não é um fato estático, mas uma construção contínua, moldada pelas lutas e resistências do presente. Em seus trabalhos, Daniele e Fabrizia não apenas iluminam o passado, mas também inspiram futuras pesquisas que visam construir um futuro mais justo e equânime para a população negra.
Na força de uma pedra jogada hoje, matar um pássaro ontem, Nathaly Souza contribui grandemente ao dossiê a partir de sua encruza com a História e as reflexões sobre o tempo. Seu texto propõe uma radical transformação em nossa percepção do tempo e da História, ao explorar a espiralização do tempo, impulsionada por forças ancestrais que giram suas giras anti-horário, ela nos convida a descolonizar nossos olhares e construir uma nova narrativa histórica. Nathaly nos mostra que a força dos Orixás também transforma nossos caminhos, nossa percepção de conforto e comunidade, transforma a História e a história, em um contínuo processo de mudança de dentro para fora, mas também de fora para dentro. As manifestações do tempo e suas reverberações com o mundo espiritual, também refletem o mundo material, na vida e na (sobre)vivência das pessoas, assim, as encruzas também acabam por ser os locais de encontro com o sagrado, mas também o local de ajuntamento das populações de terreiro, que constantemente estão na luta pela sua religiosidade e vida em comunidade.
Entre outras movimentações em grupo da população negra, Isabela Moreira é quem nos visibiliza o Bloco Afro Ìlù Àse Muvuka, como uma das movimentações negras juiz-foranas. Além do histórico do grupo, sua inspiração e as movimentações no presente, a autora do texto, vice-presidente e produtora cultura do grupo, nos viabiliza os entrelaçamentos entre sua trajetória e a do grupo, em uma coexistência que transforma a sua vida pessoal e a do bloco afro. O Muvuka, acaba por ser uma dessas movimentações do presente que Nathaly chamou de encruza, o lugar de acolhimento e encontro das reverberações culturais da população negra, que, ligada ao passado e de olho no futuro, faz e refaz a cultura brasileira no ecoar dos tambores que tocam. E seus tambores, para aqueles que não são de Juiz de Fora – MG, podem ser ouvidos em todos os lugares da cidade.
Acredito ainda que a formação da cidade de Juiz de Fora-MG, casa da maior parte dos autores do dossiê, é negra, como algum dos autores deixa explícito. O texto que traz enfoque a tal fato é o do Luan Pedretti, que com sua pesquisa, busca revelar o quão presente é o passado escravista da ‘princesa de minas’, mostrando que as marcas do escravismo remontam a estrutura social e de trabalho, rompendo, por exemplo, com o imaginário historiográfico de que a escravidão estava concentrada somente nas fazendas e plantéis. É de extrema importância que consigamos observar que, infelizmente, as reminiscências da escravidão estruturam nossas relações socioeconômicas até o presente, mas mais ainda, as provocações apontadas pelo autor se fazem necessárias para rompermos com perspectivas que colocam o histórico escravista como um senso comum, a ser vivido e imaginado no passado sem questionamentos ao presentismo do mesmo em nossa vivência. Mesmo com as marcas da escravidão, os textos conseguem destacar como a proeminente população negra juiz-forana consegue transformar as relações aqui estabelecidas e sua vida na cidade, na constante ressignificação da sua cultura, sua imaginação e sua existência, criando e recriando possibilidades outras de se fazer negro na nossa sociedade.
Das possibilidades e mobilizações que os sujeitos fazem em nossa volta, movendo o mundo, ou até mesmo as pequenas pedras do caminho conjunto nosso, Vanessa Lopes é quem ilumina as mobilizações negras de Juiz de Fora, rompendo com um “movimento negro” que só se atenta a institucionalidade, alargando o conceito e mostrando os reais empenhos dos sujeitos negros juiz-foranos para com sua sobrevivência. No alargamento das preposições do que é o movimento negro da cidade, ainda, temos a contribuição de um movimento recente a serviço da população negra de Juiz de Fora e região, a produtora cultural ‘Damata Cultural’ nos agracia também com a sua própria experiência com a Caminhada Juiz de Fora Negra, mostrando os principais pontos turísticos da cidade e o histórico para com a História Negra juiz-forana, mas também a sua atuação na crioulização das perspectivas culturais existentes com outras movimentações na cidade. São duas excelentes contribuições que nos fazem refletir das diferentes atuações nas negras terras mineiras, em diferentes perspectivas sobre o que é ser negro no Brasil.
Do fazer-se e refazer-se, Albert Milles busca, no desembrulho do seu mais profundo ser, nos apresentar seus escritos e gritos que registra em letras poéticas. Mostrando seu ser ao mundo, sua escrita deixa aberta a porta ao seu peito sambopagodeiro para escutarmos as batidas que ressoam em seu coração, aquilo que flui das experiências em conjunto que ele tem em seu âmago. As poesias nos levam, como um barco em seus rios/veias, para o fundo de seu ser de onde são produzidas as batidas/poesias que escutamos/lemos, compondo mais do que sua experiência que parece individual, mas como o mesmo registra nos plurais contatos que ele tem em grupo suas visões de mundo.
Em diálogo com a contribuição da Nathaly de Souza Silva, falando de religiões de matriz africana e seu diálogo com a História, o dossiê conseguiu criar um bloco com contribuições que se atentam as dinâmicas religiosas da população negra. De um lado temos a grandíssima contribuição de Teólonerd (Luz), multi-artista e designer gráfico, falando sobre as contribuições de uma teologia preta para as noções de cristianismo criadas pela e para a população negra; Do outro, a contribuição de Lucas Ribeiro vem para nos visibilizar a herança africana que o Islã tem no Brasil. Ele, enquanto um homem muçulmano e historiador das relações econômicas de África e islâmicas no mundo, busca trazer singular contribuição ao entendimento que temos sobre religiões em voga no Brasil, com grande histórico de diálogo das populações africanas e afro-brasileiras. Ambos trabalhos vem, na curva das ideias que nos remontam enquanto população negra, atentar para a existência de lastros de herança que aparentam estar negligentes as visões conglomerantes de tal população, em um aspecto de colocar em vistas as plurais experiências da população negra no âmbito religioso.
“Nós somos começo, meio e começo”, inspirados em Antônio Bispo, entendemos que nossa história é um constante movimento entre passado, presente e futuro. As reflexões aqui apresentadas são fruto dessa dinâmica, onde temporalidades se entrelaçam e práticas se cruzam em um constante fluxo temporal. Nesse entrecruzamento, celebramos a pluralidade de experiências que nos constituem como sujeitos negros, unidos pela ancestralidade e pela luta por justiça, mas também valorizando nossas individualidades e trajetórias únicas. A coesão grupal que construímos, em diferentes configurações, nos fortalece e nos impulsiona a seguir em frente.
Em meio às diversas ações do movimento negro, que buscam ressignificar o passado e construir um futuro mais justo, a recente sanção da Lei 14.759/23, que institui o dia 20 de novembro como feriado nacional, representa um marco importante. Essa conquista, somada à condenação dos assassinos de Marielle Franco no dia 31 de outubro e à criação do Ministério da Igualdade Racial pelo atual governo, demonstra que a luta negra, apesar de longa e árdua, tem gerado frutos. No entanto, é fundamental ressaltar que essas conquistas, embora significativas, não encerram a luta. A necessidade de garantir justiça, visibilidade e melhores condições de vida para a população negra continua sendo uma pauta urgente e precisa ser debatida e mobilizada durante todo o ano. Que o 20 de novembro, assim como o dossiê, seja propulsor das ideias negras, que alcem voos longos, alcançando novos e outros lugares, abrindo ainda mais o horizonte de perspectivas de nossa vivência.
Chrigor
Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, me embrenho pelos estudos da população negra no Pós-abolição, falo de trabalho, terra e do Piauí; cidadão do mundo, tenho muitos lares, amigos e famílias, gosto de música, bar e cafés no fim de tarde.
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