“E aqueles movimentos que fazíamos parte lá atrás já era legítimo para nossa luta racial”: o prelúdio da formação do movimento negro em Juiz de Fora/MG (1978-1990) 

As aspas no título do texto remonta uma reflexão feita por Marilda Simeão (membro do Movimento Negro Unificado de Juiz de Fora) sobre o processo de construção do movimento negro na cidade. Isso, pois, ainda que a primeira organização coletiva local tendo a centralidade no combate ao racismo tenha sido fundada em 1978, com a Associação Cultural Quilombo dos Palmares ou, até mesmo o MNU de JF sendo organizado somente em 1995, tampouco isso significa uma ausência de atividade e articulação política negra na cidade. Seja em movimentos comunitários, movimentos de trabalhadores, movimentos dentro da Igreja Católica e até mesmo partidário, podemos visualizar a pujante agência negra em Juiz de Fora se mobilizando por justiça social e democratização de direitos. Nesse sentido, para compreender  a história movimento negro juiz-forano, para além de analisar somente seus feitos, se faz necessário esmiuçar seu processo constituinte e ligação com diversas lutas sociais organizadas: os movimentos comunitários, movimentos da Igreja Católica pelo viés da teologia da libertação, movimento de trabalhadores e partidários. E esse é o objetivo do presente artigo. 

A definição que utilizamos do referido movimento social é com base nos estudos do historiador Petrônio Domingues (2007, p.102): “Movimento negro é a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais”. Tal definição traz o caráter de justiça social e combate ao racismo em todas as instâncias da sociedade: trabalho, acesso à moradia, saúde, cultura, educação, lazer, entre outros. Justamente, a característica que diferencia as organizações negras aqui tratadas (a partir da década de 1970) se faz pela desconstrução da falácia da existência de uma democracia racial no país.  

Com base nessas reflexões, a seguir, reproduzo o gráfico que representa visualmente o processo de construção do movimento negro contemporâneo juiz-forano, considerando também as organizações diversas anteriores a elas e que tiveram participação incisiva de lideranças negras racializando as desigualdades nas pautas. Tal quadro foi produzido por mim e apresentado na dissertação de mestrado (2024)1

Gráfico 1 – Fluxos, influxos e conexões do movimento negro contemporâneo juiz-forano (1970-2010) 

Fonte: Lopes, Vanessa Ferreira. A constituição do movimento negro em Juiz de Fora/MG (1978-2010): dos processos de consciência às organizações coletivas por direitos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora, Programa de Pós-graduação em História, pp. 189. 2024. 

Com esse gráfico busco destacar a dimensão, dinamismo, capilaridade e conexões do movimento negro de Juiz de Fora, seja de organizações e dos próprios sujeitos que as constroem. Cada círculo foi posicionado de forma a demonstrar uma cronologia, uma vez que aqueles no campo superior representam as organizações que surgiram em um primeiro momento. Contudo, é preciso ressaltar que isso não implica a suposição de uma substituição de uma por outra, uma vez que muitas continuaram a movimentar-se de forma simultânea. Nesse sentido, também completa o papel das setas no gráfico: relacionando o fluxo de lideranças na construção de várias organizações (setas de mão duplas), bem como algumas rupturas (seta de sentido único). Decerto, e inevitavelmente, a ausência de alguns nomes de participantes serão sentidas, uma vez que esse quadro compreende uma amostra dos sujeitos envolvidos nas organizações e não um levantamento de todos os integrantes.   

Podemos iniciar o entendimento do gráfico  destacando o papel do movimento jovem no âmbito da Igreja Católica (pelo viés da Teologia da Libertação) e movimentos comunitários. A Teologia da Libertação surge  na década de 1960 como uma posição da Igreja Católica na América Latina para enfrentamento às diversas opressões que  a população marginalizada vivenciava. Uma perspectiva filosófica e prática de olhar a realidade latino-americana com enfoque na questão social de grupos mais vulneráveis, seja de classe ou cor da pele. Tal movimento alcançou de forma intensa os movimentos populares em Juiz de Fora no fim dos anos 1970 para 1980.  

No início da década de 1970, movimentos na zona sul da cidade, principalmente na região do bairro Santa Luzia e Ipiranga, liderados por pessoas como Cirene Candanda, Natanael Amaral e Gabriela Crochet, interligam a luta comunitária com a própria experiência em grupos jovens da Igreja. Estes se tornaram lideranças pioneiras que vão estar contribuindo para articulações em diversos outros grupos e instâncias para a comunidade negra.  

Logo em 1980, surge o grupo comunitário Unibairros e, o Grupo Negro do movimento2 em 1981. A exemplo dessa ligação, recupero a fala de Paulo Cesar Oliveira, conhecido como PC, que fez parte do referido grupo: “É isso que nós queremos. Não queremos só ficar na Igreja rezando não. Dá pra fazer as duas coisas juntas (militar por direitos e rezar).” Tal afirmação representa algo muito além  de práticas assistencialistas e caridade: a juventude negra em busca de mudanças na comunidade e na própria Igreja. Boa parte desses sujeitos vão estar nas articulações de movimentos de trabalhadores (destacadamente metalúrgicos e enfermagem) e na própria formação do Partido dos Trabalhadores em Juiz de Fora, em 1980, que teria uma ala denominada de “Igrejeiros”. Por isso afirmo: pensar a formação do PT em Juiz de Fora necessariamente é visualizar o movimento negro em sua composição.3 

Além disso, em 1978, no mesmo ano de fundação do MNU em âmbito nacional, surge a Associação Quilombo dos Palmares, fundada por Wilson Novaes. A organização foi criada com o intuito de discutir a questão racial e o racismo na cidade. Ainda que a organização tenha uma grande longevidade, em 1985 passou por uma fragmentação, com parte dos seus componentes migrando para formar o Grupo de Estudos Afro-brasileiros Acotirene (GEABA). Ambas as instituições desempenharam um papel importante no que tange ao letramento racial de seus participantes, que iriam compor outras organizações e desenvolver atuações individuais antirracistas.  

Destacamos também a participação de membros do Quilombo dos Palmares e GEABA na construção do núcleo do Partido Democrático Brasileiro (PDT) em Juiz de Fora. Por isso, a seta do gráfico indicando as candidaturas das eleições de 1982 e 1992 sinaliza como os grupos, Assoc. Quilombo dos Palmares, GEABA e Unibairros, serviram como um impulsionamento de candidaturas antirracistas nas eleições municipais.  

Logo na primeira eleição direta durante o processo final da Ditadura Militar, em 1982, pelo Partido dos Trabalhadores foram lançados dois nomes advindos de movimentos de bairro e do grupo Consciência Negra da Igreja do bairro Santa Luzia: Gabriela Crochet (candidata vice-prefeita) e Natanael Amaral (candidato a vereador). Em 1988 surge a candidatura a prefeito de Jorge Lima, pelo Partido dos Trabalhadores (Mov. Unibairros) e foram eleitos para vereadores as lideranças Wilson Novaes (PDT) e Natanael Amaral (PT). Ambos foram importantes figuras atuantes no processo de construção da Lei Orgânica Municipal (a “Constituição” municipal). Todos os mencionados, incluindo outros do gráfico, comporão a primeira geração negra progressista e antirracista no campo político municipal.  

Já no início dos anos 1990, começamos a visualizar um movimento no âmbito da educação, a exemplo do Grupo de Estudantes Negros (GENE UFJF), especificamente, no Instituto de Ciências Humanas. A grande maioria dos jovens do grupo já era filiada ao Partido dos Trabalhadores.  

Em 1995 surge o Movimento Negro Unificado de Juiz de Fora, com o propósito de intensificar as conexões e abrir espaço ao movimento negro nacional. Boa parte das lideranças dessa organização na cidade advinham do próprio Unibairros e do Partido dos Trabalhadores. É importante ressaltar como tais sujeitos racializaram as discussões até então feitas nos grupos, principalmente sob o viés de classe, ainda que permanecessem presentes nas várias frentes de luta.  

No ano de 1997 nascem outras duas importantes organizações antirracistas na cidade: a Rádio Mega FM e o grupo Axé Criança, ambas localizadas na periferia da cidade (Santa Cândida e Ipiranga, respectivamente). Nesse caso, de diferentes formas, a atuação dessas organizações  tinham como foco o direito à cidadania: acesso à informação, educação, saúde, lazer, cultura e valorização étnico-racial, com relação direta com as organizações comunitárias e de Igreja.  

Em 1999 foi a vez do Centro de Referência da Cultura Negra e, na virada para o ano 2000, o Centro Cultural Afro-brasileiro Baobá, grupos diretamente ligados à produção, disseminação do conhecimento e acesso à cultura. Uma preocupação direta dessas organizações foi a montagem de cursos pré-vestibulares, visando ao acesso de negros e carentes na universidade pública. Igualmente, suas lideranças estavam interligadas à ala antirracista do PDT e PT.  

Os grupos específicos de mulheres negras começaram a surgir a partir do início dos anos 2000, composto por mulheres de uma geração mais velha (como o Mulheres da Periferia, em 2001, e a Associação Chica da Silva, em 2006) ou por uma geração posterior à das primeiras, como as Candaces – organização de mulheres negras e a produção do conhecimento (2008). Estas, em sua maioria, tinham atuação em outros grupos aqui já citados, mas, naquele momento em especial, traziam de forma pujante a questão do gênero como fator, tangenciando nas próprias organizações negras.  

Dessa forma, e por fim, o objetivo do artigo foi destacar brevemente o estreito entrelaçamento da formação do movimento social negro de Juiz de Fora com diversos outros movimentos sociais locais. Tal análise contribui para o dimensionamento do quanto a história do movimento negro se enraíza na própria história política da cidade. O reconhecimento dessa história ainda tem como desafio a difusão para o alcance da população como um todo.  


Vanessa Ferreira Lopes

Vanessa Ferreira Lopes: professora Mestre em História (UFJF) e esp. coordenação pedagógica. Membro do Grupo Emancipações e Pós-abolição em Minas Gerais (CNPq) e pesquisadora vinculada ao Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI UFJF). Desde 2023 sendo servidora pública federal na Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua como agente da cultura nos temas memória; movimentos sociais; pós-abolição e questões étnico-raciais. Contato: vanessaloopes13@gmail.com


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