Entre História e Identidade: minha jornada na pesquisa sobre Alberto Guerreiro Ramos

Iniciei a graduação em História em 2013, cursando as disciplinas e me surpreendendo com a grande variedade de temas que, sinceramente, eu nunca havia ouvido falar — talvez devido à precariedade da minha formação na educação básica, em uma escola pública. De fato, muitos desses temas chamaram minha atenção e, quando surgiu a necessidade de aprimorar meu currículo, inscrevi-me no programa de iniciação científica (PIBIC), coordenado por uma professora que lecionava a disciplina ‘História do Brasil Republicano’, área com a qual eu tinha maior afinidade nas aulas. 

O tema da pesquisa abordava uma instituição que se apresentava como uma patrulha anticomunista em Alagoas, durante as décadas de 1950 e 1960. A mim, coube a investigação sobre seu fundador, Wanillo Galvão, buscando entender quem ele fora e como chegara à ideia da instituição. Ao longo do estudo, descobri que Galvão também havia sido o primeiro bispo da Igreja Cristã Apostólica do Brasil (ICAB) em Alagoas, carreira que se destacou por conflitos com a Arquidiocese local e por questões políticas. Foram dois anos no PIBIC, que resultaram no trabalho de conclusão de curso e se estenderam a uma pesquisa mais aprofundada no mestrado, criando um vínculo de cinco anos com a temática. 

Apesar do meu interesse, não me sentia completamente conectada ao meu tema. Quero dizer, a pesquisa no campo da religião foi interessante, especialmente sobre a história da Igreja Católica no país e, sobretudo, as rupturas com os dogmas, adotando uma perspectiva de análise a partir da trajetória individual. No entanto, ao observar meus colegas pesquisando temas como a perspectiva racial, percebia que esses assuntos me pareciam mais estimulantes, muito mais próximos e conectados à minha realidade como mulher não branca e professora de educação básica em uma escola de bairro marginalizado. 

Foi assim que, ao cursar uma disciplina de História Intelectual, me deparei com a leitura de Alberto Guerreiro Ramos, que abria o bloco de textos sobre intelectuais negros. Pouquíssimas pessoas da sala o conheciam, e a maneira como foi apresentado só aumentava a dúvida: como um intelectual de tanto destaque entre 1940 e 1960, autor de dezenas de livros e artigos sobre temas como nacionalismos e a questão racial no país, não era amplamente lido na universidade? 

Confesso que meu primeiro interesse por Guerreiro Ramos surgiu a partir de sua participação no Integralismo, um tema que eu já vinha pesquisando, especialmente em relação ao bispo supracitado, Dom Wanillo, que fora militante integralista. No entanto, assim como outros intelectuais de renome na década de 1930, Guerreiro teve uma participação breve no partido de Plínio Salgado, sem chegar a se envolver ativamente com essa vertente política. Teria ingressado no movimento aos dezessete anos, mas, como justificado por ele mesmo, sua atuação foi limitada, e não há fontes que sustentem uma investigação aprofundada sobre seu papel nesse período. 

Apesar disso, meu interesse por Guerreiro perdurou. Não havia mais nenhum argumento que justificasse a proximidade da minha trajetória de pesquisa com ele, então por que a insistência? Após pouco mais de um ano no doutorado, decidi mudar o tema de pesquisa, que inicialmente estava focado na análise da trajetória de padres católicos, pois já não fazia mais sentido continuar insistindo nessa temática. Meu pensamento foi de que com os quatro anos exigidos para a conclusão do curso, poderia ousar pesquisar algo mais intimamente ligado à minha própria trajetória pessoal.  

Iniciei um novo tema de pesquisa: a trajetória de um intelectual negro. Com o objetivo de investigar e construir a biografia intelectual de Alberto Guerreiro Ramos, elaborei um projeto aprovado pela minha orientadora e pelo programa. Comecei a ler fontes inéditas para mim, pois pesquisar a vida de um homem negro que obteve grande destaque em um meio intelectual predominantemente ocupado por homens brancos revela importantes nuances de um contexto histórico do país. 

Nascido em Santo Amaro da Purificação (BA), Alberto Guerreiro Ramos mudou-se para Salvador após a morte de seu pai, acompanhando sua mãe e irmã. Já na universidade, no Rio de Janeiro, formou-se em ciências sociais (1942) e direito (1943), iniciando em seguida uma carreira de mais de vinte anos no funcionalismo público. É interessante analisar como a formação de intelectual esteve entrelaçada com sua atuação enquanto funcionário público, ou seja, não partia de campos acadêmicos.  

Ganhando destaque em torno do pensamento nacionalista, Guerreiro passou a questionar a forma como a sociologia era debatida no país, propondo um sentindo prático, engajado nas questões sociais, rompendo com a ciência tradicionalista europeia. Se considerarmos o contexto de engessamento do período, talvez seja essa a maior evidencia de sua ousadia: propor a necessidade de uma ciência social comprometida com as transformações necessárias ao Brasil pós-abolição, demarcando a necessidade de que a maior parte dessa sociedade – negra, pobre e que era excluída – passasse a ser considerada nos processos de modernização capitalista que se iniciava nos anos 1940 e 1950.  

Guerreiro também se destacou por sua atuação no Teatro Experimental do Negro (TEN), entre 1949 e 1955, quando fundou, junto a outros intelectuais negros como Abdias do Nascimento, grupos de teatro1 para debater o impacto do colonialismo nas estruturas psíquicas dos negros no Brasil, bem como nas bases que sustentam a sociedade. Sobre isso, ele afirmou: “Sem as atitudes mentais apropriadas, nenhum grupo pode ser mantido em regime de escravidão. Nenhum sistema de escravidão pode ser mantido apenas pela força física” (RAMOS, 1949, p. 3). 

Meu interesse pelo tema exigia uma base de leitura para entender em que fundamentos Guerreiro discutia e propunha suas ideias. A sua intenção de reafirmar uma “elite negra” como força para explorar todo o potencial da “subjetividade negra” (GUERREIRO, 1950) me levou à leitura de outros textos canônicos que abordavam essa discussão na época. Assim, pesquisa sobre a trajetória de Guerreiro Ramos tem me levado a conhecer Du Bois, Fanon, Neusa Santos Souza, Clóvis Moura, Kabengele Unanga, Lélia Gonzalez, Stuart All, Maria Aparecida Silva Bento, Paulina Alberto, entre tantos outros.  

Como em toda pesquisa científica, os limites se apresentam como norteadores, definindo até onde a análise investigativa poderá avançar. Assim, minhas fontes, as dificuldades com o tema e outras demandas da pós-graduação têm se tornado grandes desafios ao longo da construção da tese. Além disso, há desafios metodológicos, como o cuidado para não cair nas armadilhas de acusações e anacronismos ao tentar encaixar Guerreiro em uma perspectiva atual, alimentando-o com questionamentos à luz das pautas identitárias contemporâneas 

Certa vez, ao apresentar minha pesquisa para uma turma de alunos da graduação, um aluno se pronunciou, dizendo não gostar de Guerreiro Ramos porque ele falava muito sobre raça, mas não aceitou participar de um grupo de militância negra da época. Para esse aluno, parecia que a postura de Guerreiro, em escolher não se envolver efetivamente com as ações do movimento negro, conferia ao sociólogo certa falta de credibilidade em abordar, em seus estudos e livros, pautas referentes a temática. 

Como mencionei, Guerreiro publicou dezenas de textos e era considerado entre seus pares um intelectual de grande prestígio. Ele debatia a “questão” do negro como uma patologia do homem “branco” brasileiro2. Como homem negro, não escapou dos olhares e atitudes racistas ainda presentes em nossas estruturas sociais, e o autor não era ingênuo em relação a esse tema. Para mim, até aqui, fica claro que existem outras formas de pensar a questão racial no país. Dentro dos moldes da época, marcada pela ideia de “Democracia Racial”3, Guerreiro e outros intelectuais negros exploravam esse conceito como um instrumento de mobilização política. 

Identificar-se com o tema de pesquisa não significa concordar com o objeto de estudo, muito menos tentar criar um juízo de valor. No entanto, é importante ressaltar que não existe neutralidade na escrita. Analisar e dissertar sobre a trajetória de um indivíduo que foge aos moldes canônicos do que deveria ser um intelectual no Ocidente, às margens do Sul Global, fortalece minha atuação como pesquisadora. Junto às frustrações e dificuldades relacionadas à construção de uma biografia, se sobressai o desejo de conhecer e ensinar mais sobre a história do nosso país, a partir da ótica de um indivíduo polêmico e consagrado, mas muitas vezes marginalizado pela cor de sua pele. 

De certa forma, conhecer e apresentar a biografia de Guerreiro me transforma como pesquisadora, ao passo que me identifico como a ousadia por suas escolhas em temas que desafiam a tradicionalidade da história. Quero que sua trajetória se torne mais conhecida, evidenciando a importância de suas obras, não no sentindo de compactuar, mas propor um debate a partir disso. Num campo em que pessoas não brancas ainda disputam lugar, passo não somente a ocupar, mas a pertencer e desafiar. 

Concordando com Paulina Alberto (2017), a análise dessas mudanças de posição em relação à ideologia dominante não revela uma contradição no pensamento do intelectual em suas simpatias políticas. Pelo contrário, ela revela as diferentes estratégias adotadas por intelectuais e ativistas negros para reivindicar o pertencimento pleno à nação em contextos históricos distintos.  


Fabrizia Santana

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professora de História na Secretaria de Educação o Estado de Minas Gerais. Como bolsista de produtividade da CAPES, estou desenvolvendo minha teses sobre a trajetória do Alberto Guerreiro Ramos. Contato: fabriziasantana.oliveira@estudante.ufjf.br


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