Entre sonhos, tombos, giros e respiros, escrevo. Escritos não ditos, gritos afrolatidos expressam as dores e delícias de ser quem sou.

De início eu me encasquetei em falar do que hoje trabalho e pesquiso (memória, raça e cidade), mas consegui por mim mesmo ser convencido de que isso não precisaria ser necessariamente uma regra, e que pode haver (e há!) muito mais coisas que nos definem do que nosso trabalho. Pensei então em criar algo novo e nessa ânsia de parir a novidade me negligenciei no básico, eu. Ignorei o que já tenho, as reflexões que hora ou outra rabisco em tom menos quadrado e quando a mente, o corpo e o coração já estão muito inquietos. Reflexões que tal qual meu trabalho ou outras imagens e narrativas (auto)criadas também dizem sobre mim. Refletem momentos vividos que, como ventos, foram polindo e esculpindo esse meu relevo chamado vida. Que expressam minha trajetória, tudo (e todos) que fizeram ser quem eu sou. Então, na contramão do novo selecionei, “lá no fundo da pastinha de arquivos do meu coração”, alguns desses rascunhos que seus contextos de escrita ainda hoje mais me tocam, e que de certo modo também externam uma pluralidade existencial que aqui jaz. Enfim, fiquem com essas pequenas doses sobre ciclos, amor, ânsias e fé. Axé! 

O ciclo das estações da vida 

A boa e velha roupa colorida

Que outrora, inevitável e lentamente foi despida

Forçou o corpo, nu e livre

procurar consolo que o abrige

Mas entra e sai estação,

sua mão sempre se esquece

e volta a tentar catar aquele bonito e velho casaco

que não lhe cabe mais e tão pouco aquece

 Equívoco, ela não aprende, se esquece

Esquece-se que a estação do trem da vida não cessa

e o seu corpo, despido ou aquecido, tem pressa

Que deve correr e seguir com as peças que ainda lhe cabe

E encontrar tecidos novos, que apostam que esse corpo ainda vale.

Mas afinal e você, tá quentinho ou está se trocando?

Pugilistas

Caminhos cruzados, certeiros cruzados de boxe, num desafio cotidiano

E nele, a mais bonita arma é composta por um par de luvas chamado amor.

Com guarda baixa, esquiva entregue, coração desguarnecido

Tem lutas que tem dessas coisas: vence quem se entrega

Não sei dançar com você

Acorda, pensa e vai

Nessa torturante tentativa diária me vejo

Passa dia, vai dia

A valsa diária anuncia

Se pensar muito não tem desfecho

Pensa muito, pensa pouco

Pensa tudo o pensar louco

Torto, descompassado

Reto, mas atropelado

 Na dança com a ansiedade às vezes só quero descansar

Parar, respirar

Descolar o rostinho da pressa

Enxugar o suor da testa

E me fazer entender que às vezes muito pensamento não presta

A fé no samba e no trabalho

A fé no trabalho que samba

A fé no samba que enobrece mais que o trabalho

Enobrece, enriquece, e da dor esquece

É reza é prece, que os males padece

A cadência de uma vida árdua que no balanço batido cai

Ah samba, tu és cura

e não há vida dura
que atura o balanço da batida pura

e que canta à tristeza, vai.


Albert Milles de Souza é um sambopagodeiro, macumbeiro, entusiasta carnavalesco e atravessador de memes. Profissionalmente atua como Professor de Geografia e atualmente é pesquisador e  Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Associado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas  em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais (NEGRAM) pesquisa sobre cidade, relações raciais e memória.


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