I. PRETO
Era jardim de infância, então aquelas foram minhas primeiras férias de julho. Fomos para a fazenda onde minha tia trabalhava e lá tinha rio. Sempre fui meio peixe… Me esbanjei de água.
Primeira aula depois das férias e a tarefa era desenhar o que tínhamos feito durante as férias.
Desenhei eu mesmo no rio. Pintei a água com o lápis azul claro, o matinho verde atrás e eu dentro do rio, com a sunguinha verde e com as mãos abertas jogando água pra cima.
Lembro de ter ficado alguns segundos confuso a respeito de qual lápis utilizar para pintar minha pele.
Decidi pelo lápis preto.
Eu estava satisfeito com meu desenho, mas minha professora, que sempre se impressionava com minhas pinturas, achou estranha minha escolha.
Ela passou para corrigir e me indagou espantada: “Nossa! Você sempre pinta tudo tão direitinho! Porque pintou você com o lápis preto? Porque não usou o lápis cor de pele?”.
Eu não sei definir, ainda hoje, o quanto a censura dela à minha escolha foi definidora das minhas visões sobre pele dali pra frente. Não lembro também se eu achava, naquela época, que preto era uma cor ruim. Eu sei que eu sabia que aquele lápis meio bege era considerado o lápis cor de pele, mas não era a MINHA cor de pele.
Mais tarde na vida, houve um período em que eu não gostava de me identificar como preto. Mas eu sei, que no fundo, desde pelo menos os 5 anos de idade eu sabia que era preto.
Eu sei que não sou um negro retinto. Pra muitos eu deveria marcar pardo no formulário. Estou bem feliz com a minha cor, mas de vez em quando eu queria ter aquela pele bem escura, com a cor uniforme pelo corpo todo.
Por isso, recentemente, já adulto, depois de passar pela minha própria jornada, decidi pintar minha criança de novo de preto. Preto mesmo. Como eu me via então, e como me abraço hoje.
Desenhei também meu cabelo maior do que era na minha infância, quando cabelo crespo de homem só servia para ser raspado e na igreja me prometiam que no céu o meu cabelo seria bom.
II – MITO
Apenas nos anos 2020 eu passei a ver em lugares de mais visibilidade um reconhecimento sobre o cubismo de Pablo Picasso: ele se inspirava em máscaras rituais africanas para a desconstrução dos rostos em suas pinturas. Ele viu essas máscaras nos museus europeus, para onde elas haviam sido levadas depois de terem sido roubadas. Ali ele olha e vê um caminho para se destacar como pintor. Não sei se Picasso dava seus devidos créditos, mas a história da arte que eu estudei eu sei que não deu. Mas hoje sabemos de onde veio uma grande porção de sua genialidade: dos mesmos rostos que provocam medo em gente que admira suas obras.
Há esse mito grego onde um sátiro chamado Marsias, natural da Frígia, região da Ásia Menor, se torna um exímio tocador de flauta, tão bom que desafia Apolo — deus da arte, da poesia, da música, representando nesse mito a razão e o equilíbrio — a um duelo musical. Marsias é o primeiro a tocar no desafio e é tão bom no que faz que irrita a Apolo, que, ressentido, tira do nada um instrumento até então desconhecido, a Lira, e vence Marsias. Como o desafio envolvia uma aposta onde o vencedor poderia fazer que quisesse com o perdedor, Apolo vai além na crueldade: ele esfola Marsias e pendura sua pele numa árvore.
Apolo era símbolo da pura e boa arte, enquanto Marsias era um sátiro — um híbrido, metade homem, metade bode —, representando aspectos selvagens da natureza, como o instinto e a espontaneidade. Os sátiros estavam associados ao deus Dionísio, deus dos vinhos, bacanais e da loucura. Ele fora, na verdade, um semideus que ganhou um lugar no Olimpo porque seu pai, Zeus, amava seu vinho. Há um desdém por Dionísio (Baco, na mitologia romana, daí “bacanais”), uma inferioridade atribuída a ele por ser o oposto da razão e do equilíbrio representadas por Apolo.
Muitos estudiosos vão olhar para essa história do sátiro frígio, livre e ousado, que não consegue vencer o grande Apolo, como um conto sobre a superioridade cultural e artística dos gregos em relação à Ásia Menor.
Eu estou do lado de Marsias nessa história. Ele me lembra Baco (!) Exu do Blues e sua música “Bluesman”. Quando o curta de “Bluesman” ganhou o Cannes Lions, eu vibrei. Fiquei pensando o que pensariam os gregos que criaram esse mito se vissem que os gêneros mais bem sucedidos e influentes da música de hoje partem de um povo que preza pela espontaneidade e liberdade. Pensei: e se Baco puxasse o tapete vermelho costurado com o rio de sangue derramado de Marsias, derrubando Apolo?
“Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara, eu me sinto vivo
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues
É isso, entenda
Jesus é blues
Falei mermo”
(Bluesman, Baco Exu do Blues)
III – BLUES
Diz-se que o homem mais fotografado do século 19 foi Frederick Douglass, um dos maiores ativistas dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Em todas elas, Douglass não sorria. Estava sério, vestido com seu terno, cabelos claramente penteados.
Um dos estereótipos mais comuns do negro naquela época era do negro manso, sempre com um sorriso bobo na cara. O mesmo tipo de sorriso que Frantz Fanon vem a chamar de y’a bon banania referindo-se aos sorrisos bobos do negro nas propagandas de um produto alimentício francês (Peles Negras, Máscaras Brancas, 2008, Edufba, p. 47, 106).
Depois de ter conseguido fugir da escravidão, agora livre, talvez fosse desse sorriso que Douglass fugia. Ele entendia o poder da imagem.
Outro homem nascido cativo, Gordon, fugiu da plantação que o escravizava em 1863. Foi uma foto sua, conhecida como “Whipped Peter” (Peter Chicoteado), que despertou a consciência de muitos nortistas dos Estados Unidos a respeito do horror da escravidão. Eles já tinham ouvido falar, mas ver as costas de Gordon, com imensas queloides das cicatrizes deixadas pela chibata, foi o que comoveu uma multidão a se unir à luta contra a escravidão.
Em 2020, 157 anos depois, George Floyd morreu injustamente, sufocado por um policial. A morte foi filmada e viralizou mundialmente. Suas últimas palavras se tornaram um slogan aterrador.
“I can’t breathe!” (Eu não consigo respirar!)
Aquele momento marcou uma era de discussão racial se popularizando como nunca antes. Muita gente já tinha ouvido falar de racismo, mas ver um homem morrendo lentamente na frente das câmeras foi o que levou uma multidão a ir às ruas para tentar combater um problema que mudou de nome, mas ainda é o mesmo há séculos.
O apóstolo João (num espaço de tempo entre os anos 68 e 96 d.C.) teria tido visões do seu querido mestre agora em glória. Tais visões foram registradas no livro de Apocalipse. Em toda a sua glória, Cristo foi descrito por João como tendo pés como “bronze polido” (Apocalipse 1:15) e tendo aspecto de pedra de Jaspe e Sardônio (Apocalipse 4:3). Seriam essas referências à cor da pele de Cristo? Bronze e marrom avermelhado. Retinto.
Entre os anos 30 e 33 da era comum, Jesus Cristo foi crucificado. Sua crucificação foi representada incontáveis vezes (literalmente). Teria sido uma imagem chocante um homem pendurado numa cruz. Em milênios de imagens, poucas vezes o homem no madeiro tinha cor de jaspe e sardônio. A pele pálida, cor de marfim, não foi o suficiente para manter a humanidade escandalizada com a tortura sofrida pela figura messiânica. Embora sua morte violentíssima registrada em texto e, posteriormente, em imagens tenha comovido milhões de pessoas, nos acostumamos a olhar para ela.
Talvez por isso, lá no século 13 ou 14, na Alemanha, surgiu uma tradição que fazia uma espécie de meditação mística para refletir no sofrimento de Maria enquanto mãe que acabara de perder o filho, criando as vesperbild, representações de uma Maria sofredora com Cristo morto em seu colo. Essas são consideradas as Pietás mais antigas, mas, curiosamente, elas são mais expressivas do que as posteriores, as italianas, que se tornam muito serenas. A mais famosa é a de Michelângelo, que possui anatomia perfeita e tristeza serena.
Mas me chama muito a atenção a de William-Adolphe Bouguereau, quase inexpressiva, como em um estado catatônico, olhando diretamente para quem contempla a pintura. A mãe de Deus sofreu um dia inteiro até a ressurreição. Pietá me lembra as mães de meninos pretos que morreram injustamente, como Rafaela, a mãe de João Pedro, de 14 anos, morto por um tiro disparado numa operação policial no Complexo do Salgueiro no Rio de Janeiro, em maio de 2020. Antes ainda de George Floyd. Há uma foto dela chorando como as vesperbild sobre o caixão do filho. Entre a morte de sexta e a ressurreição de domingo, Maria chora a ausência de Cristo. Até quando Rafaelas chorarão?
De fato, são pequenos passos, mas uma imagem tem o poder de mover o mundo.
Será que há queloides nas costas do Cristo retinto?
IV – COROAÇÃO
Diz E. H. Gombrich que não existe “maior obstáculo” à criação de grandes obras de arte do que a relutância cultural de “descartar hábitos e preconceitos”. Isso inclui o ver repetidamente o mesmo tipo de representação de algo, especialmente temas bíblicos. Mesmo o texto bíblico não descrevendo a imagem de Cristo, nos apegamos ao Cristo bizantino ou, pior, até mesmo ao italiano do renascimento, como se ele fosse a representação correta.
Durante o processo de arranjo da minha música Cabelo Bom, fui confrontado pelo meu produtor artístico, Estêvão Queiroga, a respeito das minhas referências. Ele queria que a gente ousasse mais. As minhas fontes iniciais de inspiração estética já eram interessantes. Emicida, Elza Soares, Baco… O produtor musical, Yuri Costa, também já tinha suas referências. Kendrick Lamar e a trilha sonora de Pantera Negra, composta por Ludwig Göransson. Mas Estêvão queria ir além. Acrescentou ao caldeirão Fela Kuti, Gil Scott-Heron e Itamar Assumpção.
Quando Cabelo Bom nasceu, nasceu afro-diaspórica. Yuri usou como sample a fascinante faixa Alelluia de um disco lançado em 1972, chamado Missa Koonga/Missa N’kaandu. Era a gravação de duas missas católicas do Congo Central cantadas pelo Coral Mixta de Lemfu. Os nomes das faixas das liturgias são velhos conhecidos em latim — Kyrie, Gloria, Sanctus… —, mas a estética de adoração faria muito cristão ocidental ficar com os cabelos em pé: os tambores, os gritos, o coro… Belíssimo! Além do sample de Alelluia, o beat de cabelo bom é composto apenas por instrumentos comumente utilizados na África: a kora/corá, a zabumba, o krin, o kappi mridangam, os dunduns (os tambores falantes). Os samples de música clássica (Concerto para Violino nº 3 K216 de Mozart e Jesu bleibet meine Freude de Bach) são usados na música apenas de forma irônica, para dizer: “aqui não!”
Quando eu ouvi o resultado, eu entendi que minhas ideias iniciais para a capa do single não seriam o suficiente. Eu cresci desenhando. Sempre fui fascinado pelo rosto humano, então sempre o desenhei. E sempre — sempre — que eu desenhava personagens bíblicos, era com cabelos lisos, narizes finos e pele clara. Mas eu me despertei… Encontrei meu caminho. Passei a colorir as peles, “enlarguecer” os narizes, encrespar os cabelos. Então o problema não era esse. A questão é que minhas pinturas ainda eram renascentistas demais. Por mais que eu pintasse a pele negra cor de jaspe e sardônio, ela ainda não era a resposta. Não poderia ser eu a fazer a capa. Busquei artistas que possuíam uma estética mais próxima do que eu procurava, que parecesse mais da rua ou mais ancestral (ou ambos). Cheguei a fazer orçamento, porém, no fim, não sobrou dinheiro para isso. Teria que ser eu mesmo. Mas não podia ser meu traço!
Desde que aprendi a usar o desenho e a pintura para me expressar (foi depois de adulto, mas isso é papo para outro dia), eu apenas deixo meu processo criativo fluir. Mas o resultado era sempre a soma das inúmeras referências artísticas brancas e ocidentais que eu consumia. Eu precisei colocar meu chapéu de designer gráfico para produzir a arte como eu queria.
“Cabelo Bom” carrega na letra uma reflexão sobre o racismo no ambiente religioso cristão. Assim como a faixa carregava a ironia dos samples da música erudita europeia, a minha arte precisava, de alguma forma, remeter à linguagem visual cristã. Decidi que a textura dela seria a de um afresco no teto de uma Catedral.
Geralmente esses afrescos representam o trono de Deus em sua glória, com seus anjos querubins, desenhados por séculos como pequenos Eros, o deus grego. Em outros casos, os afrescos representam alguma(s) cena(s) famosa(s), como o teto da Capela Sistina no Vaticano representa várias, sendo a mais famosa “A Criação de Adão”. Pensei em fazer uma adaptação dessa cena na capa, mas seria ainda basear-me numa obra europeia já existente.
Foi depois de dias pesquisando afrescos em igrejas cristãs africanas que encontrei minha resposta. Encontrei os afrescos do Monastério Kom H, localizado na antiga Dongola (atual Sudão), infelizmente mal preservados, pois não estavam na Itália… Os afrescos representavam cenas como a anunciação e, a que mais me fascinou, a representação de um culto cristão onde claramente os celebrantes usavam tranças, roupas tradicionais africanas, instrumentos tradicionais africanos e máscaras rituais como outras religiões africanas também usam. Como os desenhos em suas roupas e máscaras lembram olhos, os usei como inspiração para os anjos da minha cena.
Numa referência um pouco mais atual, eu encontrei o monastério Keur Mossa, no Senegal, onde vivem monges que misturam o canto gregoriano com uma instrumentação africana, tocando, por exemplo, a própria kora. O monastério é enfeitado com belíssimos afrescos representando a vida de Jesus, do nascimento à crucificação.
Nesses afrescos, todas as peles são pretas.
Não marrons ou “cor de pele”… Pretas.
Pretas como meu desenho infantil de décadas atrás.
“Me disseram que no céu o meu cabelo vai ser bom!” é o primeiro verso da música. Depois eu falo sobre como todas as manifestações culturais africanas são demonizadas por um cristianismo embranquecido que diz basicamente que “a cultura europeia é a celestial”. Termino a faixa reconhecendo no cabelo uma coroa na minha cabeça, pois “de madeira nobre e escura o carpinteiro me esculpiu”.
Eu tinha minha cena, eu tinha minha estética.
Seria minha própria versão da “Criação de Adão”. O Pai coroando o homem com sua coroa crespa black power, o Filho esculpindo sua pele escura em madeira e o Espírito Santo doando-lhe um pandeiro e soprando a música em seus ouvidos. Todos com a pele preta.
Agora que eu enxergava a coroa em minha cabeça, precisava servir de espelho “pra que meu povo se reconheça”.
V – CAMINHO
Eu expus até aqui vários fragmentos de um quebra cabeça cheio de ideias. Não sei se o caminho que eu costurei fez sentido. Mas, de tudo o que foi dito, a suma é: não existe um caminho fácil para conjurar uma arte que de fato seja negra e consciente. Não dá para ser convencional no processo da verdadeira representatividade. Não basta apenas colorir em tons terrosos mais escuros as peles nas artes. Não dá pra pintar a pele negra como se a melanina fosse algo fácil de se lavar. Isso é assumir a branquitude como padrão de ser humano. O que me lembra que também não basta apenas que as pessoas negras lutem contra o racismo. Assim como nós negros herdamos injustamente o estigma da cor, os brancos herdaram também injustamente o privilégio da individualidade e a responsabilidade por mudança.
É preciso ir além da própria zona de conforto. É preciso cavar com cuidado, buscar as referências mais obscuras, pois são poucas pesquisas, são poucos registros. É tentar viajar no tempo e resgatar uma história, uma estética, um povo que foi deliberadamente escondido pelos seus opressores. É buscar artistas que demoram muito mais tempo a chegar em galerias — quando chegam! — e gritar seus nomes onde der.
E se isso é verdade em relação à arte, é verdade também em relação a qualquer área da vida onde se precisa adquirir consciência negra. Por isso, eu falo, canto, desenho, e ouso colorir.
Elza cantava: “na avenida deixei lá, a pele preta e a minha voz”. Deixo aqui, nesse espaço, também minha pele preta e a minha voz. Espero que ecoe em alguém.
Luz é mineiro e multi-artista. É formado em design gráfico e teologia, lançou sua primeira faixa como compositor e intérprete em 2021, “Cabelo Bom”, referida no texto, e atualmente produz conteúdo em vários formatos sobre questões raciais, cultura pop e teologia cristã (tudo junto e misturado) em suas redes sociais (@teolonerd em todas). Diz ele que não consegue decidir entre uma arte e uma mídia só, então escolhe qual mensagem vai passar em todas.
Esse espaço bacana de apoio e fomento à cultura pode mostrar também você e a sua marca!
Agora você pode anunciar seus produtos, marca e eventos na Trama em todas as publicações!
Para se destacar em nossa plataforma, você pode escolher de uma a quatro edições do programa de parceria Tramando. Isso significa que todas as publicações contidas nas edições selecionadas irão destacar aqui a sua marca, logo após cada texto e exposição. Os preços variaram de R$ 40,00 a R$ 100.
Basta entrar em contato conosco pelo WhatsApp (32) 98452-3839 ou diretamente na nossa página do Instagram para adquirir seu espaço!