Entre as diferentes camadas que a cultura negra utiliza para se manifestar e se preservar no Brasil, as histórias dos afoxés e blocos afros são as que me causam mais interesse, identificação e aquele sentimento de calor no coração. Isso acontece porque não se tratam somente de grupos artísticos ou identitários, mas estão ligados a uma perspectiva de construir espaços e referências de acolhimento cultural a pessoas negras. No entanto, antes de conhecer o Bloco Afro Ìlù Àse Muvuka, ou somente Muvuka, para seus íntimos e contemporâneos, a proximidade com os afoxés e blocos afros se estabelecia apenas pelas músicas, que traziam letras não somente de reivindicação contra as estruturas do racismo, mas também de celebração da cultura, da estética, das relações, da ancestralidade, da intelectualidade e tecnologias negras, pelas apresentações na televisão e pelos clipes musicais, ilustrados de sons, danças e temáticas afro-brasileiras. Afinal, quem nunca ficou impactado com ao som dos tambores do Olodum, ecoando o seu samba-reggae, ou hipnotizado com as Deusas do Ilê Aiyê, dançando ao som do seu samba-afro, ou arrepiado em assistir a ancestralidade dos candomblés tomarem as ruas, a partir da junção instrumental e vocal que o Badauê ou Filhos de Gandhy permitem sentir em seus desfiles. Entretanto, a distância territorial entre Juiz de Fora (MG) e Salvador (BA) só me permitia sentir essas forças culturais através dos programas de televisão, matérias jornalísticas e filmes nacionais.
Essa distância se tornou mais próxima em 2021, quando eu soube que existia um bloco afro em Juiz de Fora, na época ainda se encontrando nesse universo, que desenvolvia os ritmos e danças que eu sempre assisti pela televisão. Esse grupo era o Muvuka, composto por uma diversidade imensa de pessoas, mas que conectava esses diversos grupos através de seus tambores. Mas afinal, o que é o Muvuka? Bom, o bloco foi formado no início de 2019, fruto de um intercâmbio cultural realizado pelo músico e pesquisador Rick Guilhem, através de um convite feito pela Escola Olodum, para uma série de palestras sobre a cultura afro-mineira durante o período da consciência negra em Salvador. Foram realizadas intervenções na Escola Olodum (Pelourinho), na UFBA (Universidade Federal da Bahia), Senzala (Casa do Ilê Aiyê no bairro da Liberdade), entre outros. Atualmente, o Muvuka trabalha com ritmos afro-baianos em suas apresentações e oficinas de percussão, tendo como principal apoio e influência os blocos afros soteropolitanos Olodum e Ilê Aiyê, propondo uma interface entre os ritmos afro-baianos e a cultura afro-mineira.
O Muvuka, por meio dos ritmos percussivos que carregam símbolos da cultura nacional negra e de resistência, visa promover o intercâmbio cultural levando, às diferentes regiões do Brasil um pouco mais da cultura afro-mineira através do Samba de Congada. Esse é um ritmo criado pelo próprio Muvuka, trazendo as cantigas e passos de dança do congado de Minas Gerais. Desse modo, é possível dialogar o universo afro-baiano urbano com as afro mineiridades tão presentes em cada canto de Minas Gerais. Com um conteúdo programático didático, envolvendo noções de interpretação rítmica através do corpo, conversaremos também sobre a história da cultura afro e seus tambores envolvendo os alunos de forma sistemática e lúdica para que aprendam um novo jeito de tocar instrumentos de percussão e que, além disso, aprofundem os seus conhecimentos em um panorama histórico e cultural.
Nesse sentido, se faz necessário ampliar o significado sobre ser uma pessoa negra que faz parte de um bloco afro. Primeiramente, quando falamos sobre as bases que sustentam o bloco, é de extrema importância ressaltar que o Muvuka se denomina e se apresenta enquanto um Bloco Afro, desse modo, trazendo em sua essência musical, artística, estética e política elementos característicos da origem e da estrutura dos blocos afros no Brasil. Como já apresentado, o bloco atravessa em seu processo de concepção a influência dos blocos tradicionais da Bahia, que são as principais referências do Muvuka e servem como base para a elaboração desde os arranjos e ritmos que tocamos e ensinamos, até os figurinos, temas e debates que produzimos.
A partir do final do século XIX e início do século XX, algumas manifestações responsáveis por constituir o cenário, cotidiano e coletivo, da população preta e mestiça de Salvador começam a ganhar mais espaço na construção do carnaval soteropolitano, diante da constante relação das tradições candomblecistas com os sambas urbanos, a partir dos afoxés, blocos afros, blocos de índio, clubes negros e entre outras formas de manifestação coletiva, um processo evolutivo das organizações de pretos, com o objetivo de desenvolver uma dinâmica contínua de preservação da cultura afro-brasileira, se estabelece e leva para rua todo contexto de resistência religiosa, cultural e ancestral da população negra. Um dos resultados dessa inserção dos ritmos trazidos dos terreiros de candomblé dentro do contexto musical urbano, se trata da propagação do estilo musical denominado “batuque”, que desde o passado colonial, diante da organização dos instrumentos percussivos, danças e cantos, foi utilizado para referenciar, de forma genérica, todas as manifestações artísticas de matrizes africanas, comumente executadas por escravizados recém libertos, sendo considerado o precursor do samba.
Portanto, a dinâmica interna de um afoxé ou de um bloco afro não se restringe somente ao produto artístico, pois esses grupos apresentam em seu contexto de origem processos de luta e resistência pela possibilidade de estabelecer suas identidades, mas, por muitas vezes, ainda encaram a falta de espaços, financiamentos e respeito por suas manifestações, ressaltando a necessidade de aprimorar as políticas de memória, reparação, incentivos e preservação em relação à cultura afro-brasileira. Desse modo, o Muvuka se pauta no respeito às diversidades culturais, sociais e pessoais de cada um, assim, mantendo sua função para além do conteúdo artístico, buscando inserção em espaços que reivindicam essas pautas. Se tratando de uma mulher negra, candomblecista e umbandista, pesquisadora e futura historiadora, o Muvuka me provoca em vários lugares, pois me coloca em constante dinâmica de questionar e ir atrás dos espaços construídos pelos meus ancestrais, mas que muitas vezes nos são negligenciados. O lugar de mérito e destaque ainda apresenta muito sufoco para o alcance de pessoas negras no Brasil. No entanto, quando uma manifestação cultural trabalha para preservar a voz, a identidade e a legitimidade negra, através da arte, a busca por uma realidade antirracista se torna mais possível.
A minha relação com o Muvuka se transformou muito ao longo desses 3 anos, o que no início se tratava somente de um espaço de formação musical e encontro com as minhas raízes, hoje me trouxe uma relação de amor e trabalho e, acreditem ou não, esses dois aspectos andam lado a lado em cada passo que eu dou junto ao Muvuka. Um bloco que cresce a passos largos e conquistou o seu espaço no cenário cultural de Juiz de Fora, em tão pouco tempo, se tornando referência nacional, conectando todos anos compositores e músicos de todo canto do Brasil, através do Festival de Composição “O Canto Dessa Muvuka É Meu”, que neste ano teve Roza Cabinda como tema principal, partindo de um processo de pesquisa, onde eu tive a honra e a responsabilidade de coordenar. No entanto, a Força do Muvuka também reverberou fora do País, através da participação do Bloco no encontro produzido pelo Mercado de Industrias Culturales Argentinas (MICA), em Buenos Aires. A oportunidade foi promovida pelo Ministério da Cultura e ressalta a importância que o trabalho desenvolvido pelos blocos afro apresentam para a indústria cultural e para as políticas de preservação da identidade negra no Brasil. Em 2022, o Muvuka se tornou uma associação cultural, onde atualmente me encontro atuando como vice-presidente e produtora cultural. A associação se dedica a fomentar o cenário cultural de Juiz de Fora, a partir de oficinas, apresentações e palestras gratuitas, pautando a importância de formar e valorizar os agentes culturais negros da cidade.
Se perguntarem qual é a função do Muvuka, para qualquer pessoa que conheça o bloco, cada um vai ter uma resposta diferente. Esse aspecto ressalta o potencial que o projeto alcança com o trabalho que é desenvolvido. Ser agente cultural negra, em um cenário social ainda conservador e racista, pautando as raízes dos blocos afros, não é uma tarefa fácil ou confortável, mas a cada espaço acessado ou reconhecimento adquirido, a força dos tambores, com sua capacidade de acolher e conectar, traz um sentimento de confiança na trajetória percorrida.
Isabela Moreira
Isabela Moreira, graduanda do curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Iniciação Científica pelo Laboratório de História Oral e Imagem da mesma universidade, com estudos voltados para a representação negra em Minas Gerais. Musicista e produtora cultural do Bloco Afro Muvuka. Vice-presidente da Associação cultural do Bloco Afro Ìlù Àse Muvuka.
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