Hoje, vamos jogar damas.
O primeiro passo é descobrir que tudo o que você ouviu até aqui é sim porque você nasceu com “isso daí” no meio das suas pernas. As diferenças que você não conseguia explicar; os sentimentos que você não conseguia entender. As roupas que você queria usar e não podia; a pessoa que você admirava mas não podia. Os olhares que você queria mas não recebia; os jogos que você queria jogar e não eram para você. A desconfiança no olhar. As vezes que te questionaram sobre a autoria daquele trabalho, daquele desenho ou daquela maquiagem. O “não quero ouvir”, “é agora que tem que ser”, “você acha que você se manda?”, “você não pode usar isso”, “seu cabelo precisa estar do jeito tal”, “e essas unhas, não vai fazer?”. Quem já viveu, sabe.
As horas que você perdia esticando o cabelo e tendo os bifes arrancados dos dedos. Sua pele era fininha…muito sensível. Já doía; e ainda dói. Os sentimentos que você não conseguia saber de onde vinham. Lembra? Eles vieram dos canais por onde passaram todas as pessoas que chegaram a este mundo. Isso mesmo, por onde passaram todas as pessoas que chegaram a este mundo.
Já parou pra pensar no esforço que você faz pra caber em um molde que não foi feito pra você? Da mesma maneira, descobrir quem é você não é o mesmo que modelar a outra, mas entender o que cabe ou não em si; e que cada “si” vai ter seu próprio jeito. O senhor sociedade tem muitos padrões, sabemos. Muitos jeitos de dizer o que você deve ou não fazer. Muitos patrões. Muitas propriedades e aprovações.
Mas, por hoje, vamos jogar damas.
Seja você, a sua prioridade e propriedade.
Fomos formadas naturalmente para dar a luz.
Nossas mãos facilitam nascimentos, há gerações e naturalmente.
A massa, a planta, a voz, a casa, a roupa, a carne, as crianças.
Mas, em algum momento, fomos colocadas em tabuleiros, como peças.
Eu resisto e escrevo para que nossas mãos continuem sendo ferramentas de trazer presentes, partes de nossos corpos em luta pela nossa libertação. E quando eu escrevo, libertação é sobre conhecimento. Sobre acesso. Sobre democracia. Sobre poder ser, existir e viver.
Podemos ser nós, fora deste texto? O que nos é permitido carregar como ferramenta e quais nos foram retiradas socialmente para manter o padrão desejado pela natural-ordem e progresso? A arte, para mim, se configura como um lugar de existência e voz – ao lado, junta e misturada com muitas outras vozes. Diversidades.
Na sua casa, você pode mesmo ser quem você é?
Quando você está na rua, você sente mesmo que pode ser quem você é?
Você sente que pode usar a roupa que quiser, desenhar o que quiser, e estar lá a hora que você quiser? Você se sente segura estando sozinha ou em um grupo de apenas mulheres?
Do que você tem medo?
O corpo da mulher é visto culturalmente como algo público – que pode receber toques e palavras de qualquer ordem, tentando direcionar o que é melhor para nós fazermos ou sermos. Nós, da pintura feita na rua, não falamos de um outdoor, de uma empena. Nós falamos durante a pintura, em pintura, na escrita e no desenho. Em corpo presente – atente-se. Desde muito cedo, eu fui orientada sobre tomar cuidado com o que poderia acontecer comigo na rua se eu andasse sozinha; e o que significa ser uma criança e caminhar sozinha sendo uma criança-menina? Eu não entendia direito, mas era pra ficar subentendido. Será que os homens recebem orientações para não violentar na mesma intensidade que nós, mulheres, recebemos orientações para estarmos atentas e não sermos violentadas? Hoje, ocupar esse mesmo espaço, com outra consciência, ainda me faz voltar ao que eu vi, ouvi, vivi, vivo e continuo a alertar.
Mas, por hoje, vamos jogar damas.
O que é ser uma mulher pintando na rua?
Ser mulher pintando na rua é ter a oportunidade de dizer como “qualquer outra pessoa” o que ela tem a dizer. Não somos apenas “um brilho”, “um charme” nas apresentações artísticas, como já ouvi da boca dos amigos produtores – esse discurso invisibiliza o que temos a dizer e foca em nosso corpo, mais um vez. O que as mulheres estão dizendo em suas pinturas? Quais são os temas de seus trabalhos?
A arte que aprendemos na escola é uma arte intocável, inquestionável, bela e feita para ser admirada. Por quem era feita, onde estava alocada? Qual a relação que isso tem com sua inquestionabilidade? Bom, hoje, o ser que teve um diagnóstico social de inferioridade por meio do que trazia entre as pernas está fortalecida mentalmente e conseguiu escrever e dizer que não é tão simples assim. Que não é só pegar uma lata, ir pra rua e magicamente será abraçada. Não é tão romântico assim. Vale experimentar e ouvir por si mesma. A arte pode ser também uma experiência que expõe seus riscos. Para nós, mulheres, a arte expõe seus riscos. Então, mulher, exponha os seus riscos. Ocupar qualquer espaço de fala, para nós, sempre trará um questionamento em si – fomos criadas para ouvir e obedecer, de olhos e cabeça baixa. Então, firme-se ao ocupar um espaço de pensamento, de articulação, de poder, que foi pensado ocidental e culturalmente por e para homens colonizadores e progressistas. Firme-se ao ocupar a rua como você decidiu ocupar. Lembre-se de quem é e de todas as orientações que ouviu antes de chegar na rua.
Eu queria muito pintar as minhas unhas hoje com as mulheres que eu gosto ao meu lado. Mas, por hoje, vamos apenas jogar, damas.
Se faz ainda necessário dizer: leia o trabalho “das minina”. Estamos escrevendo há um tempo.
Chama.Amanda (Amanda Brommonschenkel) é artista, comunicadora e educadora social. Trabalha com pintura, desenho, tatuagem, escrita e intervenções urbanas por necessidade de existir e lutar pelo que é e acredita. Estuda artes, culturas, territorialidades, diversidade, políticas públicas e direitos humanos.
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