O desastre da “gestão CEO”

Fosse a gestão pública tal qual a privada, há muito os Governos municipais, estaduais e federal teriam sido ocupados por gestores de sucesso em grandes empresas. O cenário atual que tivemos (e temos) no Brasil, ao menos até a conflagração da pandemia da Covid-19, é de hegemonia de um tipo de olhar para o Estado que legitima essa visão pouco abrangente dos problemas e deveres da gestão pública; que identifica nos empreendimentos privados o modelo de administração que deve ser levado ao Governo. Afinal, se dá lucro e, portanto, permite ampliação dos investimentos no campo empresarial, por que não seria assim no âmbito público, resultando na criação de escolas e hospitais e em melhorias na segurança?

A questão é tentadora e engana muitos brasileiros que, honestamente, buscam melhorar a eficiência do Estado (esta que lhe é princípio constitucional) e os serviços públicos. Recentemente, porém, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), o de São Paulo, João Dória (PSDB), além do ministro da Fazenda e o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), já tinham dado declarações que ofereciam pistas ao cidadão de que, mesmo no curto prazo, tal gestão pode se mostrar exemplarmente rejeitada. E aí está, com a falta de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS), bem como a escassez de equipamentos adequados para o tratamento para o mais grave surto de doença respiratória dos últimos cem anos. Isso sem falar na pressão pela quebra do isolamento social, única medida comprovadamente eficaz para conter o espalhamento de seu vírus causador e, assim, desafogar o sistema de atendimento.

“Estado está mais para caridade que para empresa”; “Se o mercado precificar bem (a Cemig), por que esperar (para privatizar)?”; “É necessário rever direito adquirido dentro da realidade da sociedade (relativo à estabilidade do servidor público)”. As considerações sobre o perigo da “gestão CEO” sucedem-se nesta ordem.

Já alerta o economista e estrategista político Carlos Matus, consultor de gestões públicas latino-americanas de sucesso nos últimos 20 anos, à direita e à esquerda, que o administrador do Estado deve estar atento ao que chama de “cintos de gestão”, que ele ora aperta ora afrouxa, conforme as necessidades de sua administração. Para ser aprovado, ele precisa estar bem em ao menos dois deles: econômico, social, político. O primeiro, sim, diz respeito às contas públicas, à eficácia econômica do Estado e ao seu papel como intermediador de contratos privados (o que inclui eventuais privatizações e concessões). O segundo e o terceiro, porém, impõem limites àquele primeiro ponto de vista, assim como modera estes últimos. O administrador deve dar retorno à sua população quando o critério de avaliação são as oportunidades de trabalho, estudo, atendimento em saúde, tudo que lhe oferece qualidade de vida. Assim como, igualmente, deve conciliar esses dois campos com a plutocracia política, de modo a ter respaldo com as classes que lhe garantem, efetivamente, o poder de Governo: parlamentares, Ministério Público, Justiça, Forças Armadas.

Exemplos não faltam de gestões que malograram por conciliarem mal os três campos, permitindo escapar-lhes a autoridade pela falta de legitimidade. Embora derrubados por golpes (um militar, outro, parlamentar), os ex-presidentes João Goulart (PTB) e Dilma Rousseff (PT) caíram, em 1964 pelas mãos do Exército e em 2016 pelo Congresso Nacional, não por faltarem com os compromissos ante as necessidades sociais de seu povo, mas por carências nas relações com o poder econômico e a elite política. Michel Temer (MDB), por sua vez, manteve-se no cargo até o fim do mandato porque “municiou de satisfações pouco ortodoxas” a elite política, com dinheiro para deputados e poderes cedidos às Forças Armadas, mas tornou-se um fantasma nos corredores do poder por perder a mão do social e do econômico. O ex-presidente Lula (PT), ao contrário, manteve viável seu primeiro Governo e reelegeu-se em 2006, apesar da crise política do chamado “mensalão” em 2005, por estar bem social e economicamente à frente do Planalto.

Tal como se apresentaram nos últimos anos, os “novos gestores” como Bolsonaro, buscam tornar a administração eficaz pelo excessivo aperto do cinto econômico, tentando garantir o político e, assim, permitindo-lhes o afrouxo do social. A ideia é garantir lucro às empresas e, desta forma, no médio prazo tentar oferecer ao povo paliativos sociais como “mais empregos”, porém precarizados; “acesso facilitado a planos de saúde”, mas de qualidade e cobertura aquém daqueles usufruídos pela classe média e pela elite; “criação de ‘vale estudo’ em escolas e universidades particulares”, para poucos, em detrimento da educação para todos.

O lucro como solução para os problemas de um país é resultado de uma visão simplista dos problemas da gestão pública. No longo prazo, a chance de que tais medidas perpetuem a desigualdade e, como desdobramento, a insatisfação popular, é considerável e pode afetar as relações com o campo político, fazendo desmoronar o tripé colocado por Matus para o sucesso da administração.

O Estado não existe para encher os cofres, assim como suas empresas ligadas a setores estratégicos existem para servir à população e à sua cadeia produtiva, bem como sua prestação de serviços essenciais como saúde, educação e segurança são o pilar para que a sociedade possa dar oportunidades o mais equânimes quanto possível para todos. Isto para que os cidadãos possam competir em condições razoáveis dentro da realidade do capitalismo, a priori desconsiderando a possibilidade de outros modelos de organização social e econômica.

Portanto, não é questão de estar mais para “caridade” do que para “empresa”. Não deve estar para nenhum dos dois. Deve, sim, servir ao povo em primeiro lugar. Principalmente o SUS, sistema entre os mais avançados do mundo por cumprir com os valores de atendimento universal e integram aqui já explicados. O servidor público, por fim, deve ser fiscalizado na eficácia de sua prestação de serviços, sendo considerável a possibilidade de acompanhamento de seu desempenho por órgãos independentes e especializados. Porém, sua demissibilidade permite a redução da prestação de serviços em razão de interesses econômicos (imaginem demissões no setor público em razão de finanças ruins, causadas por determinado governador ou prefeito?) ou, pior, coerção do servidor público por razões políticas, sob ameaça de desligamento.

A partir das afirmações de gestores como Doria, Guedes, Zema e Bolsonaro, estas são apenas três desconstruções sobre qual o perigo da “gestão CEO” no Estado brasileiro. No entanto, o que fala mais alto são os fatos, neste caso os terríveis 35 mil mortos que aproximam o Brasil da maior tragédia humanitária deste século.


Hélio de Mendonça Rocha é jornalista. Atua como repórter de meio ambiente e direitos sociais para a revista Plurale e como analista político para o Brasil 247. Foi correspondente internacional na China em 2019.


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