Fascismo à brasileira

Uma reflexão sobre o uso da violência

Em 1909, o poeta e ideólogo italiano Filippo Tommaso Marinetti lançava o Manifesto Futurista, onde teorizava sobre a luz para o século que se iniciava: “Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher”. Não é preciso lembrar que, pelos 40 anos seguintes, o mundo enfrentaria a grande decepção da modernidade – as guerras mundiais com seu saldo aproximado de 100 milhões de mortos.

As limpezas étnicas, ou melhor, estéticas, não seriam novidade no século que emergia. De meados da primeira guerra até o presente, com líderes totalitários ou representantes eleitos democraticamente, temos os mais vastos exemplos: Camboja (1975-79), Turquia (1915-23), Bangladesh (1971), Congo Belga (1980-89), União Soviética (1930-40), China e Tibete (1958-69).

O Brasil também foi, e é, um terreno fértil para a violência contra as “minorias” que são sistematicamente agredidas e exterminadas. Segundo a Human Rights Watch (HRW), pelo menos 434 pessoas foram mortas pelos agentes do estado durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1988; além das mortes, cerca de 20 mil pessoas foram torturadas no mesmo período. Já no período da nossa “nova republica”, ao que temos visto, aparentemente os genocídios acontecem dentro dos limites da democracia. Era tarde de 2 de Outubro de 1992 quando a PM do estado de São Paulo, sob o comando do então coronel Ubiratan Guimarães e do governador do estado na época, Luiz Antonio Fleury Filho, invadiu a Casa de Detenção de São Paulo para conter uma rebelião, resultando no massacre de 111 detentos. Até hoje, o episódio não foi totalmente esclarecido pela justiça. O único condenado foi o referido coronel Ubiratan Guimarães, que jamais chegou a ser preso, até ser absolvido posteriormente em 2006 (mesmo ano de sua morte). Antes de morrer, em 2002, Ubiratan chegou a ser eleito Deputado Estadual, com o número 14.111 (sim, 14.111), recebendo mais de 56 mil votos.  Tal episódio recebeu atenção do mundo inteiro, sendo eternizado nas artes através de filmes como “Carandiru”, de 2003, dirigido por Héctor Babenco e músicas como “Diário de um Detento”, de 1997, por Racionais MC’s  e “Haiti”, de 1993, por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Apreciemos alguns trechos selecionados:

Diário de um Detento, Racionais MC’s  

Fumaça na janela, tem fogo na cela
Fudeu, foi além, se pã, tem refém
Na maioria, se deixou envolver
Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder
Dois ladrões considerados passaram a discutir
Mas não imaginavam o que estaria por vir
Traficantes, homicidas, estelionatários
Uma maioria de moleque primário
Era a brecha que o sistema queria
Avise o IML, chegou o grande dia
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
Ratatatá, caviar e champanhe
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil
Como modess usado ou Bombril
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz
Ratatatá sangue jorra como água
Do ouvido, da boca e nariz
O Senhor é meu pastor
Perdoe o que seu filho fez
Morreu de bruços no Salmo 23
Sem padre, sem repórter
Sem arma, sem socorro
Vai pegar HIV na boca do cachorro
Cadáveres no poço, no pátio interno
Adolf Hitler sorri no inferno
O Robocop do governo é frio, não sente pena
Só ódio e ri como a hiena
Ratatatá, Fleury e sua gangue
Vão nadar numa piscina de sangue
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de Outubro, diário de um detento.
Haiti, Caetano Veloso  

Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
(…) E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos (…)  

Mas Ubiratan não é o único político eleito que defende e prolifera as ideologias do mal. Em 2017, aconteceram novos massacres em penitenciarias brasileiras – desta vez, em Manaus e Boa Vista. Na época, o então secretário nacional da Juventude declarou: “Tinha que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. Sobre o mesmo episódio, o então deputado federal Major Olímpio (SD-SP) incitou uma disputa de mortes entre presídios dizendo: “Placar dos presídios: Manaus 56 x 30 Roraima. Vamos lá, Bangu! Vocês podem fazer melhor!” Ao explicar sua fala polêmica, ele justificou que seu papel como legislador é “manifestar o pensamento da sociedade”. De fato. Major Olímpio está certo, desta vez. Esse é realmente o pensamento da parcela fascista da sociedade brasileira. Para fechar nossa resumida lista reflexiva, não podemos deixar de citar o fatídico episodio de 17 de abril de 2016, quando, em plenário, o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro defendeu seu voto favorável pelo impeachment da ex presidente Dilma Rousseff, homenageando a memória do notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Vale lembrar ao leitor menos atento que foi aberto um processo no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados para apurar tal absurdo. Não deu em nada. Aliás, deu sim: Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil. Mais uma vez, Major Olímpio tinha razão!

Vivemos tempos de nova emergência fascista em nosso país. Parece não haver mais espaço para diálogo, debates e discordâncias no campo democrático. A própria imprensa tem sido perseguida por noticiar verdades que envolvam o governo atual. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras o Brasil, está em 107 lugar de 180 posições no ranking de países com mais liberdade de imprensa. A constante queda no ranking está relacionada ao presidente atual, segundo a entidade.

O fascismo não é uma ideologia estanque. Ele se adapta e se modifica ao longo do tempo. Através da história, temos suficiente material para perceber essa transição com eventos ao redor do globo; Portugal, Espanha, França, Áustria, e Holanda são alguns dos países que experimentaram ondas fascistas ao longo do século XX.  

Na obra “Como Funciona o Fascismo”, o filósofo americano Jason Stanley enumera um conjunto de características de um governo de viés fascista. Tentaremos resumir os 10 aspectos descritos em sua obra:

  1. O Passado Mítico: Controle da história através da educação, exaltando ou diminuindo a importância de eventos passados conforme a ideologia dominante.
  2. Propaganda: Apreço pelas palavras de ordem e desprezo pela lógica do diálogo.
  3. Anti-intelectualismo: As universidade e centros acadêmicos passam a ser descredibilizados, assim como ciências especificas.
  4. Irrealidade: Fatos históricos são substituídos por teorias da conspiração. A emoção é muito mais fácil de se manipular do que a razão.
  5. Hierarquia: sine qua non, o líder se torna figura indispensável e insubstituível, ainda que vá contra toda ordem lógica e racional de outras lideranças.
  6. Vitimização: A perseguição a determinados grupos não se trata de um ataque ou intolerância, mas sim de uma reação quanto ao hipotético mal que eles representam.
  7. Lei e Ordem: Preservação do status quo é fundamental para manutenção do desenvolvimento da ideologia.
  8. Ansiedade Sexual: Os homens passam a crer que seus assédios não são mais vistos como um simples flerte. Tendência a um retorno ao “machismo”.
  9. Noção de pátria: Percepção de que este ou aquele povo é melhor que outro. O diferente não deve ser tolerado.
  10. Arbeit mach frei: Noção de que as riquezas de uma nação devem ser distribuídas apenas aos que participam ativamente da criação de riqueza.  Deficientes físicos, por exemplo, deveriam ser descartados.

Recomendo a leitura completa da obra para ampliar horizontes sobre o tema. No entanto, mesmo com o breve resumo descrito até aqui, o leitor consegue notar alguma semelhança com o atual modelo de governo brasileiro?

O sujeito “moderno” abstrato com seu “modo de vida” de difícil identificação (seja por conta do sexo, religião, riqueza, etc) passa a não caber mais dentro desses modelos de sociedade enamoradas pelo fascismo. O “grande Outro” se torna cada vez mais incômodo ao existir junto do status quo definido. Para usar a analogia de Bauman em “O mal estar da pós-modernidade”: Sapatos, ainda que magnificamente lustrados, não são bem vindos em cima da mesa de jantar.

Por falar em jantar, quem estará convidado para se sentar à mesa? A história tem demonstrado que as minorias não têm seus lugares reservados. Os negros, nativos indígenas, LGBTQ+, deficientes, mulheres, judeus na Alemanha de 1940, curdos na Turquia, e tantos outros grupos em situação de vulnerabilidade compõem a extensa lista de pessoas que jamais puderam se sentar à mesa de jantar.

Caetano e Gil, cantaram em 1993:

Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

Hoje cantamos:

Rayshard Brooks, Atlanta
George Floyd, Mineápolis
João Pedro, Rio de Janeiro
Guilherme Silva, São Paulo


Referências:

Marilena Chaui – Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro, 2013

Zygmunt Bauman – Modernidade e Holocausto, 1997

Zygmunt Bauman – Medo líquido, 2006

Jason Stanley – Como funciona o fascismo, 2018

Hannah Arendt – Origens do totalitarismo, 2015

Hannah Arendt – A condição humana, 2015

Pierre Bourdieu – Sobre o estado, 2012

Slavoj Zizek – Violência, 2008

Slavoj Zizek – O sujeito incômodo, 2016

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,human-rights-watch-ditadura-no-brasil-torturou-20-mil-pessoas-434-foram-mortas-ou-desapareceram,70002770377

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/21/brasil-cai-pelo-segundo-ano-seguido-em-ranking-de-liberdade-de-imprensa.ghtml

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/11/opinion/1484149442_585187.html

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/os-10-maiores-genocidios-da-historia/

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702019000200123

https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_do_Carandiru

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ubiratan_Guimar%C3%A3es

https://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

https://pt.wikipedia.org/wiki/Giacomo_Matteotti

(todos os links consultados em 20/06/2020)


Guilherme Mative Butikofer Keppk é professor, graduado em Teologia e graduando em Sociologia Política pela FESP-SP.



Clique na imagem para acessar a loja virtual da Bodoque!


Galeria

Apoie pautas identitárias. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *