Como se ninguém pudesse me ouvir Todas as vezes que gritei Como se nunca estivesse aqui Por todas vezes que chorei Todo dia que olhava no espelho e não me via Cansado, sem forças, não me entendia Por que eu era tão diferente? Por que isso incomoda tanta gente? Será que um dia serei feliz?
Transicionar não é fácil, não é recente, não foi pra sair da rotina. Ser você mesmo e se assumir requer coragem, requer forças, requer que você volte a ter contato com a única pessoa que jamais te abandonaria: você mesmo.
Procurei por tantos anos alguma solução Alguma coisa que pudesse ser uma luz dentro do meu coração Já não sabia mais Era vergonha pros meus pais
Foi analisando o seu desconforto com as pessoas ao seu redor, foi quando nenhuma roupa te trazia confiança, quando todo sorriso que saia de você não soava mais tão verdadeiro ou espontâneo. Vi você se anular e se diminuir muitas vezes por alguém que não fazia a minima para os teus sentimentos, ou quando fazia não ligava. Quando deu sinais e ninguém viu, ou se viu, fingiu que não.
Foi olhando pra você chorando no banho, se debatendo e odiando suas nuances, foi também te ouvindo chorar baixinho antes de dormir perguntando a Deus porque se sentia tão mal, tão diferente, um monstro. Olhando você enquanto se vestia e não era de nenhuma forma que te agradava, colocando, às vezes, brincos de forma forçada. Não era nunca por você mesmo, e sim pelos outros. Todo vestido, todo esmalte, todo brinco, toda vez que agiu pelos outros, esquecendo do seu amor próprio. Por todas as vezes que não teve coragem de se assumir e tomar posse de todas suas decisões, pelas vezes em que não teve sequer coragem de se olhar no espelho.
Toda as vezes que chorei até dormir Que me batia, por sentir um corpo que não me encaixava As vezes que me forcei sorrir Me deprimia, e cada vez mais me afundava
Pois é, eu vi tudo, todo o medo, toda a frustração, toda a coragem entalada na garganta, vi tudo isso na última vez em que tive receio de ME olhar no espelho. Ali, eu fui capaz de me enxergar, me resgatar, me assumir; de limpar as minhas lágrimas de tristeza, de quem já não tinha esperança alguma.
Foi a primeira vez que chorei lágrimas de amor próprio, que molhavam meu sorriso de gratidão. Era tão difícil sair de toda aquela negatividade, de toda aquela vida que não parecia minha – até porque, na verdade, não era nem um pouco minha, não era eu. Um peso saiu das minhas costas; pude, enfim, respirar aliviado.
O dia que tive coragem de ser quem sou O tanto de orgulho que tive Tamanha autoestima que gritou Maior felicidade em ser trans. Existe. Existo.
Sou somatório de todas minhas dores, medos, anseios, dúvidas e receios. Sou feito de luz própria também. Luz, essa, que eu não era capaz de enxergar, coberta de lama; do barro de um corpo que não era meu, de um lar que me obrigava a me abrigar e existir. Escavei com a própria mão, sujando minhas unhas. Por vezes, até me cortei. Doeu. Mas segui cavando. E não é que eu vi a luz? E que luz! Como antes eu não pudera ver? Me questionei, duvidei tanto, tive tanto medo e, no fim, foi só uma questão de procurar um tesouro. Era ouro, diamante, safira… Era eu. Sou eu. Luz própria. O próprio eu.
Peguei aquele menino encolhido, chorando, todo assustado pela mão e agora luto por ele contra tudo, porque ele sou eu. E agora, não deixo de ser quem sou por ninguém.
Murilo Alves é um homem heterossexual trans. Estudante de gastronomia, ativista dos direitos trans, youtuber e criador de conteúdo. No instagram: @otransmissao; no youtube: Hey, Mu!
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