“índio e gay”: corpo de luta

Desde a infância, eu sabia que era diferente das crianças ao meu redor; mas eu escondia quando percebia que não era visto como algo bom. Na escola, muitas vezes fui motivo de piadas ofensivas por ter gostos que eram somente meus, desejos diferentes do as pessoas queriam ver. Em casa, eram os meus trejeitos que eram observados; mas eu sempre tinha os meus momentos para ser eu de verdade.

Na escola, principalmente, uma das minhas dificuldades era em relação à minha identidade. Não sabia a diferença entre o que seria “de menino” ou o que seria “de menina” – o que eu via era simplesmente um brinquedo, sem gênero. Como uma criança, independente do que, eu queria brincar e ser criança. Porém, muitas vezes, o que eu tinha ou queria não era visto com bons olhos por outras pessoas. Comunidade, amigos e até mesmo a família, muitas vezes pelo desconhecimento, me impediam de ser livre, por fugir do que seria o “certo”.

Na Escola Estadual Indígena Sagrado Coração de Jesus, onde terminei o ensino médio, nunca tive problemas em relação a minha identidade enquanto indígena, uma vez que todos éramos indígenas. Mesmo sabendo da minha identidade, de ser indígena, de ser Boe, a valorização em relação a quem eu sou nunca foi uma prioridade; eu não tinha a noção da importância de ser indígena e ser Boe. Agora, eu sei da importância e valor de tudo que eu sou e de tudo que eu tenho.

Com o tempo, eu já não conseguia esconder ou disfarçar minha sexualidade. Foi na minha adolescência que descobri o que eu realmente era, mas foi um dos piores momentos da minha vida. Nessa época, tive o contato com outros jovens homossexuais da minha aldeia e percebi que eu também era homossexual. Foi um período muito difícil, por diversos motivos. Minha família muitas vezes não me apoiava, não me entendia e não me aceitava. Creio muito que a religião Católica influenciou nessa resistência, por minha família ser fortemente religiosa cristã (naquela época), principalmente minha mãe.

Ainda na adolescência, um jovem seminarista que morava na minha aldeia e estudava para ser padre me disse que eu não deveria seguir com a minha orientação sexual e que eu deveria ter dignidade, me respeitar, chegando até a dizer “o que você tem no meio das pernas”? Com todas as informações que eu recebi naquele dia, me senti totalmente fraco, errado, incapaz, confuso e indigno do respeito das pessoas. Até mesmo pensei em cometer suicídio. Então escondi, por muito tempo, das pessoas e de mim mesmo, o que eu era.

Minha mãe descobriu que eu era homossexual – sim, descobriu! Na aldeia, as informações correm muito rápido por ser um lugar pequeno, e chegou aos ouvidos da minha mãe que eu era homossexual; eu nunca tive a coragem de me assumir. Levei uma surra por ser gay e, desde então, meu convívio com minha mãe só piorou; nunca mais tive uma vida “normal” em relação a minha orientação sexual . Numa dessas discussões que sempre tínhamos, eu fui para a BR (que fica a 6 km da aldeia) com o intuito de me suicidar (jogando-me na frente de qualquer carreta que passasse por lá); chegando à estrada, um vendedor que vai à aldeia me viu e pediu para eu voltar, para eu não cometer esse erro, pois eu ainda era jovem. Eu voltei com ele.

Algumas vezes, fui embora de casa; e o meu melhor lugar era fora dela. Morei por algum tempo com minhas irmãs. Minhas melhores companhias eram os amigos e um lugar em que me sentia obrigado a estar, na escola. Lá, eu pensava em me tornar independente, para superar as dificuldades que a vida me propunha com mais facilidade; então na escola era onde eu deveria estar. A educação transforma e ela foi capaz de me transformar e de transformar muitas pessoas que viviam e vivem ao meu redor.

A educação sempre foi uma prioridade que me acompanhava. No ano de 2011, em busca de uma educação diferenciada, – visto que na aldeia a escola estava passando por algumas dificuldades -, uma prima e eu resolvemos morar em Rondonópolis/MT com uma tia. Depois de alguns meses, voltamos para aldeia por não conseguirmos ficar na cidade; éramos muito jovens. Voltando pra aldeia, demos continuidade aos estudos.
Quando voltei pra aldeia, tentei estudar em uma vila próxima, Paredão Grande/MT, por acreditar que a escolaridade seria melhor. Era uma escola com a maioria de pessoas não indígenas. Conheci várias pessoas, fiz algumas amizades, mas eu não me sentia completo. Existiam pessoas que me impediam de ser quem sou, ou que faziam brincadeiras ofensivas que me fizeram voltar a estudar na aldeia novamente.

No final do ano de 2015 eu prestei o vestibular pra UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), no curso de Design (que eu sempre tive vontade de fazer), depois de tentar em outra Universidade, mas não conseguir a nota exigida – eu era muito jovem e inexperiente. Deixei de apanhar na escola e em casa e fui apanhar da vida. Assim comecei meu trajeto na universidade. Às vezes, chego a pensar que a minha vinda para Campo Grande foi pela não aceitação de algumas pessoas da comunidade sobre minha sexualidade, tentando me afastar e ser feliz.

Em 2016, quando chego a Campo Grande, um lugar até então desconhecido, me deparo com algumas diferenças em relação à minha vida e rotina anterior. A primeira expressão em relação a cidade foi “nossa, que cidade grande”, e eu nem imaginava que se tornaria um lugar que traria grandes conquistas e diversas experiências – não só no âmbito acadêmico, como também para minha vida pessoal, visto que foram alguns anos dedicados aos estudos. Mas, além disso, eu vivia e tinha minhas particularidades como qualquer outra pessoa.

De início tive que me adaptar à Universidade, lugar em que eu estaria sempre presente. E as Universidades, por mais que passem a ideia de vários universos, muitas vezes não cumprem com essa noção (quase sempre, diria). É um local elitista, burguês, competitivo, onde o acesso e os privilégios são distintos; e a UCDB, por ser privada, deixa essa diferença de classes sociais e financeiras ainda mais nítida, e muitas vezes eu não me sentia acolhido. Porém, ela foi um espaço muito construtivo, onde pude conhecer novas pessoas e ter novas perspectivas em relação à vida.

Depois de perceber como seriam meus dias, as coisas foram ficando menos complicadas e eu entendi um pouco mais sobre o espaço acadêmico. Ainda assim, precisava me adaptar às pessoas que ali frequentavam. Na universidade e principalmente no meu curso de Design, muitas pessoas tinham perfis diferentes do meu, dificultando um pouco a aproximação. Acredito que, por desconhecimento, muitos tinham alguns pré-conceitos em relação ao “indígena” e algumas vezes chegavam a fazer comentários como “brincadeira” carregados de ofensa e preconceito.

Para exemplificar essas falas, trago a seguinte experiência: em certo período, a UCDB estava passando por algumas reformas em sua estrutura e, em alguns locais, a passagem dos acadêmicos estava limitada. O curso de Design tinha aulas em diferentes blocos da Universidade, então seria necessária a transição nesses espaços. Um dia, junto de dois colegas, passamos em um lugar de difícil acesso; nesse espaço, tinha uma parte limpa, já construída, e outra suja, sem ainda ter terminado. E eu optei por passar na parte limpa já terminada, então um desses colegas questionou o porquê de eu não passar na parte que estava suja, já que eu era “índio”. Eu logo respondi que não passaria na parte suja, pois não seria ele que lavaria o meu sapato. A outra colega interviu dizendo que ele estava sendo preconceituoso, e ele me pediu “desculpa amigo”. “Amigo não, colega. Meus amigos não tem esse comportamento”. Porém, esse não foi um caso isolado, e não acontece somente no espaço acadêmico; em outros espaços, o preconceito em relação aos indígenas é perceptível. Muitas falas discriminatórias estavam presentes na cidade à qual eu me adaptava.

Viver em um local totalmente diferente do anterior, com muitas pessoas, de diferentes perfis e classes, foi uma ruptura com o que eu vivia antes. Mas eu tinha que ignorar tudo o que era presenciado para que eu pudesse seguir os estudos. Na aldeia, todos éramos conhecidos e, de certa forma, somos pares, por sermos indígenas; então, nossa etnicidade nunca foi um problema. Mas estar na cidade e ser indígena são outras questões. E eu, um ser com um corpo com esses marcadores sociais, muitas vezes me sentia obrigado a desconstruir, informar, educar novos corpos que desconhecem nosso verdadeiro ser.

Muitas vezes, essas indiferenças aconteciam entre pessoas que eu queria próximas, como colegas, amigos e parceiros. Muitas vezes, vinham de onde mais havia repressão. Pessoas do meio LGBTQIA+, principalmente Gays, muitas vezes me enxergavam com olhar pejorativo, de superioridade, por terem melhores condições financeiras que nós indígenas – o que era muito entristecedor, por vir de pessoas que muitas vezes passam por experiências negativas semelhantes e que poderiam construir um diálogo.

Depois de um tempo, isso deixou de me incomodar. Eu entendi a importância que tenho para o meu povo, para outros povos, bem como para o meio LGBTQIA+ (ao qual também pertenço); então, não me sentia inferior a ninguém. Simplesmente achava desnecessário esse comportamento. Os preconceitos na cidade, em sua maioria, foram por ser indígena, e não por ser gay. Por ser um espaço onde havia outros gays, de certa forma, eu passava despercebido enquanto tal, e outras pessoas sofriam isso junto comigo. A marca de ser indígena e estar ocupando espaços que não eram considerados nossos foi mais cruel. No entanto, eu não desisti, e essas barreiras que a sociedade me impunha foram superadas.

Sempre quis terminar o meu curso e continuar a carreira acadêmica, mostrar para essas pessoas o que somos de verdade, enquanto “índio e gay”. Durante a graduação, fui absorvendo todas as informações necessárias para poder me defender dessas ofensas, que muitas vezes eram consideradas somente brincadeiras. Atualmente, vejo que mudei em relação ao pensamento de incapacidade que por muito tempo tive em relação a Universidade e sobre minha auto-estima. Hoje, sou muito mais do que pensavam que eu era; sou capaz de realizar as mesmas funções que outras pessoas da sociedade. Sinto-me mais preparado para tomar minhas decisões pessoais. Participo de movimentos sociais pelo direito a cultura, pela igualdade, como ser indígena, do meio LGBT e Indígena LGBT. E tudo isso me move, me faz pensar em construir uma sociedade melhor usando o meu corpo para fazer esse movimento. Falando por mim, para que outros gozem do que eu construir, mesmo que seja pouco.


Neimar Leandro Marido Kiga é um homem gay cisgênero, indígena do povo Boe Bororo. Nascido em 1996, mora na aldeia Meruri (morro da raia), pertencente ao município de General Carneiro/MT. Designer, graduado pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e mestrando no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Participa de movimentos sociais pelo direito a cultura, pela igualdade, como ser indígena e LGBT. Também é um dos fundsdores da mídia Tibira, @indigenaslgbtq.


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