Acabo de ler o peculiar artigo que um intelectual midiático publicou hoje, 27 de junho, num jornal de grande circulação no país. Por discrição costumo não citar nomes.
Em seu texto na Folha de São Paulo, Demétrio Magnoli critica, com a habitual ironia autorreferenciada paulistana, a retirada de estátuas de figuras históricas de espaços públicos. O gesto tem se tornado um tanto mais frequente em meio às manifestações antirracistas decorrentes do assassinato de George Floyd, nos EUA. Magnoli diz que a atitude caracteriza a “imposição do esquecimento”, chama seus praticantes de “vândalos do bem” e, pérola das pérolas!, afirma categoricamente: “Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente”.
Muito sui generis a perspectiva do doutor – em geografia humana, ressalte-se. Fico pensando se a Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, tem ou não esse estatuto “celebrativo”… Acho que sim. O Cristo Redentor? Sim. As imagens colossais de Buda no extremo Oriente? Idem. “Padim Ciço” em Juazeiro? Também. Alguém poderia dizer: “Ah, mas é diferente… esses são símbolos de religiosidade”, grosso modo. Tudo bem, pode até ser, mas e o David, de Michelângelo? E a estátua de Pedro, o Grande, em São Petersburgo? E o uso comercial que lojas de departamento e shopping centers Brasil afora fazem de réplicas de certas imagens “simbólicas”, como a musa nova-iorquina?
Ao contrário do que disse o midiático pensador, estátuas de personalidades – históricas ou míticas – servem justamente para tornar o passado eternamente presente. Porque “é possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento”, diz F. Nietzsche (na sua Segunda consideração intempestiva). Liberar memória de trabalho é uma necessidade fisiológica para o ser humano, e é também por isso que construímos estátuas, pintamos quadros, escrevemos romances (históricos ou não)… Todos esses textos (em sentido lato) funcionam como “arquivo” (cf. J. Derrida) da nossa humanidade, mantendo e atualizando constantemente a história dos significados das coisas por eles representados. Sem arquivos, talvez tivéssemos que conviver com a maldição da lembrança integral, eterna e instantânea, como Funes, o memorioso, de J. L. Borges.
Acontece que, também como diz Derrida, todo arquivo traz em si a pulsão de morte: morte da memória fisiológica da comunidade que o instituiu – e que confia a ele, ao arquivo, a tarefa de lembrar – e morte dele próprio, o arquivo, que, se abandonado pela comunidade, se esquecido, morre. No caso das estátuas de escravagistas notórios, o que será que elas matam? O que preservam? Horror ou louvor? Asco ou veneração?
Num momento de reação ao racismo, algumas dessas imagens foram arrancadas de seus pedestais; outras entraram na mesma mira e talvez tenham destino semelhante. Tomara que sim, porque também é arquívica a imagem do arremesso da estátua de um mercador de vidas pretas ao fundo de um rio (que não é o do esquecimento). De uma forma ou de outra, mesmo invisível em si mesma, a escultura infame continuará fazendo parte da história, assim como as esculturas de Lenin que Magnoli cita, talvez para parecer isento e imparcial, certamente ciente de que assim ostenta erudição e exala autoridade.
Europeus saquearam o continente africano por séculos, como bem lembra Eric Killmonger (o vilão do filme Pantera Negra); são chamados “conquistadores”, “colonizadores” e outros nomes com conotação em geral positiva. Se apenas eu não vi Demétrio Magnoli chamá-los de “ladrões”, peço desculpas: falta-me “erudição”. Mas, do meu ponto de vista, se derrubar estátuas de racistas vai nos fazer parecer “vândalos do bem”, assim seja: chumbo trocado não dói.
Luciano Nascimento é mangueirense, filho, marido, pai, professor, flamenguista, psicopedagogo… mais ou menos nessa ordem. É, também, idealizador do projeto Dê Efiência (www.deeficiencia.com.br)
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