Deitado sobre o divã, tinha diante dos olhos a conhecida parede drywall pintada de verde onde fica pendurado um quadro em aquarela da Baía de Guanabara. Os pés estão molhados porque chove lá fora e ele calçava sandálias. Nunca saía com guarda chuvas porque ocupava a mente com coisas mais importantes do que a previsão do tempo. Muito mais importantes, na verdade.
Receio que esteja sendo perseguido, mas não é uma perseguição comum. Não tenho medo de pés que caminham no encalço dos meus por aí, sei me resolver bem com eles. Sou perseguido de olhos, de olhos que me lêem e fazem isso através das palavras que escrevo. Sei que escolhi passear na escrita do mesmo jeito que meu vizinho que se chama Beagle passeia com sua cadela poodle: sem a pretensão de coisas grandes. E como misturo palavras comuns, mas de uma forma bem minha, costumo estar bastante confortável com a meia dúzia de pessoas que me chegam a ler. Passam os olhos, mas não enxergam, você sabe como é? Hoje se lê todas as coisas, mas nenhuma delas tem conhecimento. Não me julgue maluco, mas escrevo para mim através do que escrevo para os outros. Quando leio meus papéis já não sou mais o mesmo que escreveu, e essa distância de alguns minutos ou de vários dias já é suficiente para que o eu de agora escute o eu de antes. Escrevo de mim, para mim, sobre mim e através de mim. Eventualmente uso sites e revistas técnicas para fazer isso fantasiado de sociologia do poder ou dos usos simbólicos da palavra casa. É assim, mas, inegociavelmente, é sempre para mim. Você me entende?
Bem, eu achava que fazia dessa forma, porém, de mais ou menos um mês para cá estou sendo perseguido por alguém que lê de mim em mim mesmo. Não sou de superstições, mas tenho certeza de que não é gente, pelo menos não é do jeito normal. Acontece. Eu escrevo e me leio. Passados alguns dias ou às vezes menos – já houve vez de ser naquela noite, sentado em casa – tenho a sensação de que certos pares de olhos passeiam por mim e me roubam a palavra. Ouço então, vindo de longe, uma voz que exclama: “escreveu para mim dessa vez” ou então, “quem ele quer enganar?” Uma exclamação puxa a outra, e quando me dou conta já estou lido a distância por essa voz que me percebe.
Falei que não era gente, preciso explicar melhor. É uma mulher, eu acho. Se não for mulher no sentido daquelas que aprendem a ser mulher desde mais novas, é uma fêmea. Tenho a impressão de ser índia, mas isso dura só um pouco. Logo depois se transforma, e tenho a impressão de que vira coisa, uma coisa fêmea. Se lembra do Primo It? Pois então, quando não é índia é como a coisa, só que de pelos pretos, escuros como se fosse a noite. Independente da forma, o que me apavora são aqueles olhos. São como duas azeitonas pretas, grandes, com pouco branco e muito escuro. Quando eles me olham, doutor, quando me lêem de longe, ficam brilhantes. A criatura vive se esgueirando pelos cantos da casa. Não tenho sossego.
No fundo não a odeio, o que detesto é o breu. Você acredita que outra pessoa poderia entrar na cabeça da gente? Isso acontece quando amamos de verdade alguém, sei porque já amei uma vez. Foi rápido, foi dolorido, mas foi amor. Fui abandonado pela mulher que fugiu com outro me dizendo que eu era um canalha, só porque não quis me casar. Eu entrava naquela mente, ela entrava na minha…
Será que é ela que me lê a distância? Será possível que virou essa coisa e me persegue sem se mostrar? Mas por quê faria assim? Ela ainda tem as chaves do apartamento, sabe meu telefone, pode me contactar. A criatura me assombra porque não se mostra.
Silêncio e algumas apalpadelas no braço do divã. Respiração profunda, taquicardia.
E se eu escrevo para essa coisa, doutor? E se ela se alimenta daquilo que eu queria viver no segredo? Ao mesmo tempo que somos diferentes, somos tão iguais. Gostaria de vê-la de frente. Já que gosta, eu declamaria meus poemas em voz alta ou gravaria em áudio para que pudessem ser ouvidos e repetidos gelando a espinha. Não me importo de que seja cabeluda, desde que continue fêmea. Aí é que mora meu sofrimento.
Vou percebendo que escrevo para ela e vou sumindo. Por vezes não consigo mais me ler para mim, porque existe uma estética selvagem que rodeia minha caneta e meu bloco sulfite. Escrevo no idioma que criei a partir das memórias e só eu, meu outro eu e a coisa sabemos entender. Tudo a distância. Acredito que a coisa tenha vergonha de ser coisa, e viva escondida na caixa do violão de algum pai solteiro, na poesia pobre do Peter Pan ou debaixo da cama de cinco ou seis homens com quem se deita quando não tem o que ler.
Aqui, olhando para o teto, isso parece tão bobo. Me vem na cabeça a vontade de escrever sobre uma padaria onde três velhos bebem café e conversam sobre o bicho do dia. Um deles, o mais alto, diz que sonhou com veado, será 24 na cabeça O outro somou os números aleatórios do cardápio numa lógica qualquer e encontrou pavão. O terceiro, em silêncio, se lembra de que a falecida mulher comprou os móveis da sala quando os dois tiraram a sorte grande num jogo em 1976. Droga, foi só aparecer esse último pensamento que é como se a coisa apontasse os olhos por detrás do balcão esperando mais. Pedindo que eu escreva mais, lendo que na memória cifrada de um Sebastião qualquer existe metalinguagem. Meus deus, doutor, não consigo me guardar da coisa. Quanta aflição.
Silêncio prolongado. No relógio afivelado ao contrário no pulso do homem de barba e cavanhaque, os ponteiros indicam que a sessão se aproxima dos quarenta minutos. Sentado numa poltrona acolchoada por detrás do divã, quem escuta parece enrolar entre o polegar e o indicador da mão direita um fio invisível, deslizando a ponta de um dedo sobre o outro.
Metalinguagem? – repetiu monotônico o doutor.
Metalinguagem!
Meter a linguagem…
Não sei se entendi bem. O que estou tentando dizer é mais profundo, não tenho palavra certa. Será, doutor, que o meu prazer é só escrever?
Vamos ficar por aqui.
Depois de se levantar, pagou o equivalente aos quarenta minutos em que o homem velho lhe alugou os ouvidos e as pontas dos dedos. Agradeceu, saiu. No elevador se sentia mais leve um pouco. Falar é uma forma de escrever sem a cola das letras no papel. Na portaria do prédio viu um idoso encurvado que passeava com sua cadelinha basset. Com dificuldade deslizava, indo e voltando várias vezes, diante da fachada do prédio em frente. Devagar, mas feliz.
Seguindo a rua na direção da Avenida Rio Branco foi elaborando o que de vida havia por detrás daquele casal homem-cão. Do cérebro se excretava o começo de um texto. Atravessou a rua, e quem olhasse com cuidado veria que desde então uma sombra esguia e peluda se colava nele.
Vinícius Lara é historiador, fotógrafo amador e um apaixonado pelo absurdo.
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