Em 1917, fundava-se no Rio de Janeiro a revista D. Quixote. Dentre os responsáveis por esse projeto, estava o famoso intelectual humorista e boêmio Bastos Tigre. O nome que batizou o periódico não poderia ser mais sugestivo: D. Quixote, o “cavaleiro da triste figura”, o lutador contra moinhos de vento, que tinha ao seu lado o inseparável Sancho Pança. No entanto, essa não era a primeira vez que o clássico romance espanhol de Miguel de Cervantes, publicado no início do século XVII, inspirava a inauguração de uma revista humorística no Brasil. Na década de 1890, o caricaturista Angelo Agostini também fundara um periódico com o mesmo nome.
Segundo a historiadora Monica Veloso, em sua tese de doutorado publicada na década de 1990, a figura de D. Quixote foi amplamente utilizada, tanto na Espanha quanto na América Latina, para representar a figura e o papel do intelectual na modernidade. No contexto carioca, por exemplo, o modernismo teve como uma de suas grandes expressões o humor, a sátira, as caricaturas, etc. Era o esforço de tornar o humor a chave interpretativa da história e da identidade nacional brasileiras.
Poucos anos após a inauguração da segunda revista D. Quixote, o Brasil realizava os famosos festejos do centenário da Independência. Não faltaram motivos e inspiração para os colaboradores da revista, que exploraram em demasia as contradições e paradoxos da “entrada do Brasil na dita modernidade”. Nas páginas da revista, os malabarismos feitos pelas autoridades políticas na encenação do espetáculo da modernidade eram apresentados como patéticos ou como verdadeiros simulacros, ante um país de muitas contradições sociais, analfabetismo, doenças, epidemias. Figurões eram caricaturados pela sua postura bajuladora com relação aos “gringos”, em detrimento da exposição de um Brasil real. Quanto mais se mostrava sério, o Brasil do centenário mais se expunha ao ridículo e se tornava objeto de humor. A famosa charge de Kalixto, representando um índio sendo impedido de entrar na festa do Centenário, tornou-se uma das representações humorísticas mais expressivas desse momento.
O fato é que os intelectuais humoristas que orbitavam em torno dessa revista tinham um projeto bem claro: o de dessacralizar o panteão cívico-nacional e destruir os pedestais que alçavam a posições de semideuses os ditos “grandes vultos” da história nacional, os chamados “homens a frente de seu tempo” (que o brasileiro tanto gosta de usar até os dias de hoje). Essa narrativa canônica, de caráter cívico-pedagógico, estava, definitivamente, na mira desses artistas. A “Ordem e o Progresso”, lema que, desde a Proclamação da República, era motivo de desavenças entre católicos conservadores, liberais e positivistas, transformava-se em “Desordem e Regresso”.
Por que falar da D. Quixote justamente agora? Porque, a pouco menos de dois anos, o Brasil completará 200 anos de sua “Independência”. E aí é impossível deixarmos de fazer várias perguntas: haverá o que “comemorarmos”, memorarmos juntos? Faz sentido a “comemoração”? Refletir ou comemorar? Que lugar o historiador ocupará nesse momento? O desgoverno que aí está no poder, tentando subtrair do país toda a dignidade/ imagem através do caos e da barbárie, ainda estará “reinando”, amparado por suas milícias e laranjais?
Creio que a missão dos “Quixotes” do primeiro centenário fosse, talvez, menos árdua e deprimente. “Ordem e Progresso” continua sendo, assim como na Primeira República, alvo farto de deboches e risos (ainda que de “nervoso”). No entanto, a “cara” do verde-amarelismo bolsonarista, mais do que patética, é criminosa. É com ele que o “Brasil oficial” festejará? Teremos liberdade de imprensa até lá? Continuaremos nos envergonhando diante da exibição dos símbolos nacionais? Afinal, estes foram assenhoreados e vilipendiados por antiintelectualistas, negacionistas da ciência, fanáticos religiosos, defensores de ditadura, de torturadores, de Terra plana e bajuladores dos EUA. Deixaremos que estes continuem arrogando para si o título de verdadeiros representantes da nação? Que danação!
Sem condições de traçar nenhum prognóstico sobre uma data mítica, simbólica, e muito menos ainda sobre o Brasil que existirá a poucos menos de dois anos, alerto para o nível de nossa perda de rumo. Perdemos o bonde da história. Que o bicentenário faça reacender em nós o desejo de propagar, insistentemente (ainda que “malhando a ferro frio” ou “lutando contra moinhos de vento”), uma história crítica, reflexiva, pública, amparada na pesquisa, na preservação dos acervos em arquivos, bibliotecas e museus, em diálogo constante com outras áreas do conhecimento. Que a nossa bandeira seja esta, e não a resignação diante de um nacionalismo artificial e hipócrita, segregacionista, negacionista, contrário à diversidade e à pluralidade de narrativas pautadas no comprometimento com os valores democráticos e os direitos humanos.
A despeito das especificidades de cada contexto histórico e dos inegáveis avanços na produção historiográfica, não hesito em afirmar: nossa missão, em pleno século XXI, continua sendo quixotesca! Não se trata de um quixotismo destruidor de tudo aquilo que julgamos “tradicionais” e “elitistas” em nossa cultura. Trata-se, antes de mais nada, de fomentar olhares problematizadores sobre o passado, analisando toda e qualquer narrativa e modelos explicativos como historicamente datados, como camadas do tempo sobrepostas a outras camadas. A percepção de que o conhecimento histórico é algo inerte, morto, à espera de ser resgatado intacto, tal qual aconteceu no passado, é ainda uma “grelha” interpretativa profundamente cristalizada em diversos segmentos da sociedade brasileira. Nesse sentido, se para a academia, a história-problema é banal, para a sociedade, está longe de sê-lo.
A overdose de informações que circulam nas redes sociais coloca muitos indivíduos diante da percepção de que toda e qualquer versão interpretativa sobre a história é “mais verdadeira” do que a ensinada pelos professores de história e historiadores.
Como o antídoto para as fake news não corre ainda em nossas veias, ficamos reféns de um mero negacionismo manipulado por ideologias perversas, que se dizem “neutras” e dividem a sociedade em trincheiras. Isso nos impõe o desafio de demonstrar, cotidianamente, que o grande potencial formativo da história não está em contrapor verdades x mentiras, mas em tornar possível a compreensão de que a história é “a ciência do homem no tempo” (Marc Bloch), e, como tal, precisa ser compreendida como um constante processo de construção. É preciso compreender as diferenças entre relativismo e perspectivismo, as interferências do mundo social sobre o conhecimento histórico, as batalhas narrativas e de memórias, as diferenças entre memórias e história, etc.
Portanto, se os humoristas da revista D. Quixote estavam empenhados na missão quixotesca de fazer uma História do Brasil pelo método confuso (como na paródia construída por José Madeira de Freitas em 1922), contrariando os argumentos de autoridade proferidos por historiadores vinculados a esferas oficiais de produção de saberes e culturas históricas (como IHGB, Museu Histórico Nacional, etc), hoje, a missão quixotesca é nossa. E, quando digo nossa, estou me referindo aos historiadores que lutam pela regulamentação da profissão e tentam ampliar seu espaço no mercado de trabalho. Para isso, no entanto, precisamos ir além do microcosmo acadêmico e buscarmos espaço em revistas de divulgação, redes sociais e canais de difusão voltados para o alcance de um público mais amplo. Só assim podemos ampliar o respeito e o reconhecimento diante da sociedade. Sem, é claro, jamais perder a doce loucura do humor que nos afasta das caretices ufanistas e nos faz ser ouvidos e manter a sanidade mental.
Sérgio Augusto Vicente: Sou professor de História e historiador, com bacharelado, licenciatura e mestrado em História pela UFJF. Atualmente, curso doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História, vinculado a mesma universidade. Dedico-me ao estudo da história social da cultura no Brasil, trajetórias individuais e de grupos, história intelectual, patrimônio cultural, memória e educação. Moro em Juiz de Fora (MG), onde trabalho no Museu Mariano Procópio. Sempre que posso, escrevo crônicas e poesias, abrangendo temáticas diversas, como memórias, cotidiano, política, etc.
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