Antes de pensarmos a organização do espaço da igreja e o hábito que ali é construído e compartilhado, é necessário considerarmos como pano de fundo o contexto histórico no qual a regra máxima daquele ambiente foi desenvolvida: a saber, o cânone que, proveniente da língua grega, traz o sentido de “haste de mediação” – popularmente conhecido como “régua”.
A primeira lista completa dos livros a ser republicada por Concílios no Norte da África (Hipona em 393 d.C. e Cartago 397 d.C.) foi escrita no ano de 367 d.C. pelo bispo Atanásio de Alexandria; no entanto, a discussão sobre o cânone antecede a sua oficialização. No Concílio de Cartago foram excluídos, por exemplo, a “Epístola de Barnabé”, “Didaquê”, “Apocalipse de Pedro”, entre outros. O processo de canonização dos textos – com início no segundo século – acompanha, segundo Everett Ferguson, o reconhecimento da autoridade divina em escritos, a constituição de fronteiras para o cânone e o fechamento dos mesmos através do consenso quanto à lista comum dos livros sagrados. Lançando mão daquilo que orientava a mentalidade dos muitos indivíduos que participaram deste movimento mobilizado entre os séc. II ao IV, cabe a nós o questionamento das variáveis que, com eles, se tornavam chave fundamental para a seleção daquilo que ornaria ou não com os preceitos sociais, políticos e econômicos de sua contemporaneidade. Antemão, anunciamos que essa mesma seleção não anula a confissão de fé dos muitos que possuem na Bíblia a sua orientação ética, moral e espiritual; ela apenas amplia a nossa cognição acerca dos limites historicamente estipulados sobre a manifestação da espiritualidade, sobretudo nos corpos.
Seria um equívoco mobilizarmos as intenções de interpretação e possíveis alterações como explicação única das seleções feitas ao longo dos séculos. Por vezes, copistas realizavam erros involuntários nas transcrições. Tendo em vista que esses mesmos eram membros de assembleias (e não profissionais), ainda assim, não se exclui o interesse de determinados grupos em consolidarem o seu pensamento (OLIVEIRA; CANCELLIER, 2017, p. 81). Nesse ambiente também caracterizado por disputas narrativas, tem-se que: externamente, havia a relação dos cristãos com os judeus não-cristãos e com os pagãos; internamente, os conflitos sobre a questão da mulher (OLIVEIRA; CANCELLIER, 2017, p. 82) . A respeito desse último ponto, Bezerra e Richter dirão que o processo formativo da Bíblia “se deu em meio a disputas relacionadas à liderança feminina. Por isso, foram retirados do cânon muitos registros que contavam e celebravam ministérios e lideranças femininas, coleções de oráculos de profetizas cristãs e outros que continham os ensinamentos de mulheres (como os Atos de Paulo e Tecla, Pistis Sophia e o Evangelho de Maria) (…)”[1]. Ao ambientarmos a nossa leitura segundo o contexto no qual os livros foram escritos e, posteriormente, também selecionados e oficializados, evitaremos, por exemplo, os discursos contemporâneos que elencam o patriarcado como sistema social determinado “divinamente” para se constituir uma família. Convém destacar que esse amplo movimento é também uma investida na naturalização da violência estrutural e sistêmica.
Dada esse brevíssima introdução, podemos pensar nas normas que os espaços contemporâneos das igrejas possuem enquanto fronteiras que balizam noções compartilhadas a formar uma hierarquia por parte daqueles que, atualmente, fazem a seleção da ordem – aquela que organiza, mas que também é um imperativo sobre as ações dos sujeitos ali submetidos. Analisando esse espaço específico enquanto um corpus vivo, com filosofia e políticas próprias, hierarquicamente arquitetado para contínuo funcionamento interno, pensa se no ato de normar e/ou legislar como inerente a quem o dirige. Segundo Karnal, “legislo não para atacar o erro, mas para estar feliz ao lado do acerto (…) legislamos, classificamos, e com isso criamos a clareza que evite nossa inclusão no lado mau.” (2017, p. 31); assim sendo, o espaço funciona segundo a sua ordem que, por sua vez, caminha para um fim. Entretanto, há uma necessidade cada vez mais latente em se levantar questionamentos sobre a normalização de procedimentos que não cabem a uma norma estabelecida divinamente, mas que é apenas reproduzida por aqueles que possuem voz de comando mediante uma releitura e um repaginamento da ordenação pela via da força. A força sobre o direito.
Sobre a última frase, elucido a explicação de Mário Ferreira dos Santos que diz que “uma das mais acentuadas características do barbarismo vertical consiste em apresentar a força como superior ao direito. O direito não é mais o que é devido a natureza de um ser estático, dinâmico e cinematicamente compreendido, e que, portanto, se funda no princípio de justiça, que consiste em dar a cada um o que lhe é devido e em não lesar esse bem. O direito não é o reconhecimento natural dessa verdade, mas apenas o que provém do arbítrio que possui o kratos (poder) político. O direito natural é postergado, é discutido e até negado para supervalorizar a norma emanada do arbítrio do legislador, a ordem jurídica emanada do que possui o Kratos o detentor do poder político, autoridade constituída. A justiça não é mais objeto de especulação. A desconfiança acerca, a dúvida instala-se, até negar-se, finalmente, qualquer fundamento a essa entidade, que é uma das mais caras virtudes do homem culto.”[2]
De fato, a perspectiva de Ferreira está associada a uma correspondência macro dos indivíduos com o Estado; no entanto, interpreta-se – ao menos neste ensaio- o espaço da igreja enquanto um sistema simbólico com alocações bem delimitadas. Nesse sentido, nos valemos da reflexão do autor quando este aponta para um barbarismo presente nas ações ou imposições da força sobre o direito, e, desta forma, lemos numa escala micro como: as violências estruturais e sistêmicas sobre o que de fato a mensagem d’O Cristo elege como um modus operandi coletivo – que, curiosamente, não diz de um grupo fechado com ações em si mesmo, mas de como esse ampara os que não fazem parte dali. Partimos agora para uma variável importante dentro desse amplo processo de ordenação, que é a construção e acomodação de uma ordem discursiva.
Ao adentrarmos um ambiente eclesiástico, seja lá ele qual for, qualquer ambiente dotado de realidade material que responda por esse lugar social, devemos levar em consideração que entramos não somente num campo físico, mas num espaço simbólico no qual se encontram artefatos, códigos e corpos transitando, que podem ser transitórios ou funcionais devido a algum tipo de demanda. Essa conjugação simples e tão somente não deduz a presença de um esquema ordenado; mais parecem um conjunto de peças avulsas buscando conexão, enlaçamento. Até o momento em que for possível subentender um enunciado pairando sob a face daquele espaço, tal realidade não passa de um caos por decifrar, palavras soltas carentes de uma gramática básica da comunhão, que vão se escorando e se estranhando rumo a um sentido comum que seja possível enunciar. Mas não é o espaço em si que proporciona tal enunciado – ou melhor dizendo, não esse espaço impessoal e sem matriz de subjetividade. O enunciado é justamente a produção humana. São os sujeitos que, martirizando seu desejo, o enunciam e o fazem entrar na ordem do discurso – que é, simultaneamente, a ordem do espaço. É dessa forma que os falantes organizam o espaço: através da objetivação das necessidades simbólicas que o compelem a endereçar seus pedidos a um outro (social). O encontro com o outro é um encontro forçoso, traumático, uma vez que ele preexiste a nossa entrada no mundo; mas também é nesse encontro que nos humanizamos, socializamos, subjetivamos uma ordem. (Não é a toa que “tornar-se sujeito” possui uma ambiguidade fundamental: significa assujeitamento; submeter-se). À medida em que os sujeitos fazem acordos a respeito de seus desejos e se submetem a uma autoridade comum, o espaço funda essa ordem. Mas que espaço é esse? O espaço que ultrapassa em muito o local – este sempre mais ou menos ocasional. O espaço do qual falamos é o espaço onde se circula o discurso.
O discurso é o estatuto dos enunciados que os sujeitos fazem [3], que monta uma espécie de cadeia significante repetitiva, gerando um laço social que une os sujeitos nesse espaço. Pois o discurso não é simplesmente a fala, o gesto, coisa assim, individualizada. O discurso é o ato que, através das palavras e principalmente para-além delas, codifica e organiza determinadas relações dentro de um jogo– categoria que se faz presente em todo espaço congregacional. Ou seja, todo espaço é constituído por discursos, e, à medida que esses discursos e práticas sociais se repetem, são legitimadas, são reconhecidas (ou desconhecidas), dizemos que, nesse conjunto, há uma instituição. Instituições escolares, familiares, religiosas (!) surgem relacionadas à essa lógica fundante do espaço: a lógica operada pelo dispositivo denominado discurso. Veja que não mencionamos aqui o termo ‘jogo’ de forma despretensiosa: se trata mesmo de um esquema dinâmico, em que os participantes ocupam lugares (funções), assumem hierarquias (poder), operam trocas (relações), se submetem a regras (leis) e conjugam uma linguagem (vocabulário) que lhes permitem serem compreendidos enquanto produzem discursos, tipo um jogo. Em vez, porém, dos discursos circularem ‘livremente’, diz Foucault [4] que toda instituição nos mostra incessantemente que nesse espaço há uma ordem – a ordem do discurso. Numa ordem institucional, há uma série de procedimentos que controlam, organizam e dominam as repercussões dos discursos contra as aleatoriedades perigosas que estes podem fazer irromper dentro de um estado ordenado. A instituição detém – metonimicamente – as leis explícitas e implícitas que são vigiadas por seus agentes institucionais. São eles que garantem a ‘ordem da casa’. Em nome da ordem das coisas, é preciso que certas relações, lugares e papéis permaneçam e se fixem – até que, com o tempo, tal ordem se encontre naturalizada, numa cristalização imaginária, sem que seja percebido o seu caráter instituído ou não-natural. Essa evolução é resultado de uma imobilidade no interior desse espaço e de agentes que já não se reconhecem mais como mediadores simbólicos de uma lei, mas as próprias encarnações da lei. É quando a ordem – que mediou a socialização dos sujeitos falantes – passa a os enxergar como meros instrumentos subordinados às suas ordens – imperativos emudecedores.
Notas:
1- SOUZA, Carolina Bezerra de; REIMER, Ivoni Richter. Violência, Bíblia e as Mulheres. In: ULRICH, Claudete Beise; LELLIS, Nelson (org.). Coleção religião e violência: mulheres em foco. São Paulo: Recriar, 2020. cap. 2, p. 33-48.
2- SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. 2. ed. São Paulo: É Realizações, 2015. p. 26.
3- LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise, O seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
4- FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Gyovana Machado é Cristã, graduanda em História pela UFJF e formada no Seminário Teológico Rhema Brasil.
Micael Correia têm 22 anos e é um escritor não-autorizado. Atualmente faz graduação em Psicologia e está envolvido até o pescoço com os estudos de Psicanálise Lacaniana e Teoria Social – enquanto faz música nos intervalos.
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