Cadernos são meios tradicionais de registro conhecidos e utilizados pela maioria das pessoas no mundo. Apesar de muitos os considerarem antiquados e os associarem a seu uso habitual – escolar ou profissional -, os tempos atuais têm trazido a tona novas formas – ou retomado antigas formas – de usá-los como meios para registrarmos momentos e pensamentos que são individuais e intransferíveis.
Há alguns anos, no Natal, ganhei de presente da minha irmã um caderninho. Eu tinha acabado de me formar no ensino médio, com a aprovação no curso de jornalismo em mãos. “Toda jornalista precisa de um caderninho”, ela me disse. Demorei a começar a usar o caderno; ele era tão bonito que não queria estragá-lo escrevendo.
Quando comecei, contudo, nunca mais parei. Aquele caderno específico se tornou receptáculo de desabafos e pensamentos diversos em um momento de muitas mudanças – e eu sinto que, de alguma forma, desapontei a minha irmã ao não utilizá-lo para propósitos jornalísticos. Bem, usei, mas não estritamente para isso. Para alguém metódica como eu, foi difícil aceitar que um caderno possa ter anotações de todas as áreas da vida de forma desorganizada e ainda funcionar. Mas na desorganização, me encontrei, e nasceu o meu primeiro ‘Dirty Journal’.
Dirty Journal é uma das diversas modalidades de registro em cadernos utilizadas atualmente. Ela consiste em usar as páginas do caderno para registros tanto verbais quanto imagéticos. A maioria dos Dirty Journals conta com desenhos e colagens feitas por seus donos, além de textos e anotações diversas, sem muita organização. Essa é a modalidade usada por mim e também pelo jornalista Rafael Bouças. Ele conta que começou a escrever os cadernos na adolescência: “Eu comecei rabiscando na beirada dos cadernos de aula, até que um dia resolvi dar um espaço exclusivo pra mente fluir melhor”. Em seus cadernos, Rafael se expressa das formas que lhe são mais próprias, e comenta: “Eu costumo carregar coisas neles também. Bilhetes, ingressos, uma ou outra eventual coisinha”.
O Dirty Journal, contudo, está longe de ser a única ou mesmo a modalidade mais popular de registro em cadernos. A bibliotecária Maísa França, que desde 2016 mantém cadernos pessoais, começou este ano a manter também um Bullet Journal: “A beleza do BJ é que dá pra personalizar, e não ter limite de páginas, e não ter limite de espaços, e foi a solução para me organizar no trabalho”. Os bullet journals consistem, essencialmente, em cadernos estruturados para que você organize suas tarefas através de atualização rápida e diária, sem tomar muito tempo do seu dia – mas de forma sistematizada, para você não se perder. Além da questão da organização, o Bullet Journal também traz espaços para notas, onde você pode registrar pensamentos e ideias. Mesmo usando os bullet journals para organização, Maísa enfatiza que continua mantendo cadernos pessoais: “Eu carrego um para todo lugar que eu vou. No início, eu desenhava e escrevia; mas hoje em dia, tenho um caderno de desenhos separado, que fica mais em casa, e o de pensamentos vem sempre comigo.”
Assim como Maísa, o estudante de doutorado Pedro Atã também mantém seus cadernos de pensamentos através apenas de textos. Porém, seu formato se assemelha mais ao de um diário – não necessariamente de acontecimentos, mas de reflexões: “Quando eu escrevo, eu sinto que a minha maneira de pensar e a minha capacidade de reflexão estão mudando ali naquele momento. Eu estou entrando num mundo no qual eu tenho mais controle. O ato de escrever me freia, me desacelera, funciona pra esvaziar a cabeça um pouco”.
Uma tecnologia antiquada
Redes como o Facebook e o Instagram, cada vez mais, se esforçam no sentido de proporcionarem ao usuário uma experiência narrativa de suas vidas, além de funcionarem como centro de compartilhamento de pensamentos e ideias. Contudo, mesmo com o avanço tecnológico e a especialização das mídias, tem se visto cada vez mais lojas e pessoas que produzem e vendem cadernos artesanais. Uma infinidade de temas decoram as capas dos caderninhos de bolso, que se tornam objeto de desejo, e a variedade de tipos de papel e encadernação encantam até os leigos no assunto. Os preços, que variam de acordo com os detalhes de cada caderno, vão de 20 a 200 reais – porém, mesmo com preços assim, o sucesso de vendas, em especial para o nicho acadêmico, é digno de nota.
Pode soar estranho o sucesso dessas marcas e o fato de que tantas pessoas jovens ainda tenham o hábito de escrever em papel, mas Pedro explica: “É uma experiência que é diferente da de escrever no computador ou no celular. É principalmente pela diferença de experiência de escrita que o caderno traz em relação às outras formas. É uma diferença de tempo, de reflexão. O caderno não te permite editar tanto quanto o texto de computador, você tem que escrever de uma maneira mais lenta, você tem que dedicar a sua atenção toda àquele pedaço de papel, àquele momento. Isso força a sua cabeça, o seu pensamento, a ter que trabalhar com aquela materialidade do papel e da caneta, que parece que põe freio na sua velocidade de pensar. Enquanto que, se você está escrevendo no computador, tem tanto estímulo, tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, que chega a ser estressante. Você chegar e pegar o caderno e começar a escrever e pensar, parece que é uma forma de fugir desse estresse. As pessoas começam a recuperar esses meios mais arcaicos quando percebem que eles trazem algumas funcionalidades que a gente precisa e talvez nem entendesse que a gente precisa. No caso do caderno, acho que tem a ver com essa questão do tempo de escrita, que é um pouco mais amigável para as pessoas.”
“Eu acho que é porque a tecnologia é efêmera e está sempre mudando, e mesmo que a gente esteja sempre mudando, não consegue ir no ritmo da tecnologia. O papel, ele sempre vai durar.” – comenta Maísa sobre o motivo de sua opção por usar cadernos tanto de forma pessoal quanto profissional – “Quando a gente revisita o que escreveu e desenhou e consegue perceber o que sentiu no momento, a gente faz um panorama melhor da nossa vida e se entende melhor do que [quando] depende de tecnologia, de pegar um pdf e ler. O papel é importante.”
O link entre o passado e o presente
A possibilidade de fácil revisitação e a liberdade criativa proporcionada pelos cadernos, em oposição às limitações de tempo e forma geradas pelos formatos digitais, são aspectos importantes na escolha dessa mídia como forma de registro pessoal. “Os escritos, os desenhos, eles vão acontecendo sem necessariamente ter um padrão nem um cronograma. Normalmente são coisas pequenas e rápidas de acordo com algo que eu estou pensando, ou que me chama a atenção.”, comenta Rafael; “É como se fossem fragmentos que, quando eu bato o olho, consigo pensar no quadro inteiro”. O jornalista conta que registra coisas muito pessoais em seus cadernos, que são importantes para suas reflexões e percepções: “É um espaço subjetivo, de certa maneira. Não necessariamente vai fazer sentido pra quem pegar e ler, mas sempre vai ser uma chave de memórias para mim. É meio que um quebra cabeças personalizado.”
Maísa, por sua vez, relembra que a vontade de desenhar e escrever voltaram ao comprar seu primeiro caderno e que, nos últimos anos, eles foram companheiros fiéis em muitas aventuras: “Eles estiveram comigo em diversos lugares. O último esteve comigo em São Carlos, em Juiz de Fora, em Dublin, em Montevidéu, na Escócia, e nele ficaram registradas sensações muito fortes que eu tive em todos esses lugares. Relendo hoje em dia, eu lembro claramente do que eu senti e de como foram essas experiências.”
Além disso, a materialidade dos cadernos como objetos também contribui para a preferência: não só por ser portátil e por permitir que se faça registos em qualquer ocasião, mas por eles próprios se tornarem partes das memórias. “Não só a memória da sua vida passa para o caderno, mas também a sua memória de conexão com aquela mídia, com aquela ferramenta, eu acho que ela é um pouco mais marcada e tem um pouco mais de identidade do que uma memória homogênea de uma coisa que foi desenhada pra ser robusta no sentido de não mudar, que seria de uma mídia digital”, comenta Pedro, comparando os cadernos a outras plataformas de escrita como o Word. “O caderno tem uma coisa que é uma indexicalidade. Quando você está escrevendo, sua mão toca o papel, com uma certa dinâmica, uma letra, uma caneta, algo pode cair na folha e sujá-la, e tudo isso faz com que o caderno seja um rastro, um indício de um momento que aconteceu. Essas marcas temporais, elas são muito mais presentes no caderno que em uma mídia digital. O caderno envelhece, o lápis gasta, a tinta borra. Isso é uma coisa que dá um sentimento de temporalidade e de autenticidade para as memórias. O caderno carrega essa potencialidade de testemunhar momentos, e pessoas, e locais.”
O meu primeiro caderno (aquele que a minha irmã me deu), ele caiu no rio uma vez. Após o desespero de talvez ter perdido todo o seu conteúdo, o aspecto que ele adquiriu com essa experiência faz com que eu me lembre sempre desse acontecimento. Depois deste dia, além de desenhar e escrever, passei a também colocar rastros do mundo nele. Sangue de um corte, poeira de uma estrada, grama de um campo de futebol. Uma dor, uma viagem, uma vitória, entre tantas outras memórias guardadas através de mais do que palavras. Hoje em dia, e já há quase sete anos, não sei me expressar de forma melhor do que nos cadernos.
Cada novo caderno é um baú de possibilidades; é a materialização da metáfora de que ‘cada dia é uma página em branco’. Manter um caderno é poder ver o passado, uni-lo ao presente e perceber o futuro de formas diferentes. E, é, eu recomendo pra todo mundo.
Texto original escrito em junho de 2018; revisto e atualizado em 16/08/2020
Carol Cadinelli é jornalista, apaixonada por palavras. Escreve, edita, revisa, traduz e, vez ou outra, fotografa. Atua como Social Media na Peregrina Digital, assistente de edição na Trama e escritora nas horas vagas.
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