“Discurso de ódio”: expressão que aparece cada vez mais nos jornais ao redor do mundo. É o racismo da supremacia branca estadunidense, o nazismo desde a Alemanha do século XX, a homofobia na Rússia, a xenofobia, o machismo, o extermínio dos povos indígenas…
A título de conceituação, o “hate speech” corresponde às manifestações de ódio, intolerância, ou até desprezo contra um grupo, uma comunidade, uma minoria, seja em razão de religião, gênero, etnia, deficiência física ou mental, entre outros.
“E o direito à liberdade de expressão?” Ele existe e é protegido de inúmeras formas, mas o ordenamento jurídico não admite direitos absolutos, e a liberdade de expressão não pode ser utilizada de forma inadequada gerando lesões a outros direitos igualmente importantes, ou até mesmo práticas ilícitas.
No Brasil, essa questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal pela primeira vez em 2003, em um habeas corpus que discutia a publicação de livros de caráter antissemita. Já na ocasião, entendeu-se que a prática configuraria crime de racismo e, portanto, a proteção da igualdade e da dignidade dos judeus prevaleceu em relação à liberdade de expressão.
Dezessete anos se passaram e para alguns estudiosos o discurso de ódio no país já está em nível epidêmico, e além de se exteriorizar através de palavras, muitos casos de violência física já foram registrados.
Observe que não se trata de mera antipatia, e sim da escolha de inimigos, da formação de estigmas com fins segregacionistas. A fala é marcada pela hostilidade e apresenta meios de opressão e perspectivas de inferioridade, por meio de palavras com o poder de intimidar, insultar uma coletividade de pessoas.
O fenômeno é grave, e além de gerar danos imensuráveis às vítimas (sentimentos de vergonha, medo, angústia, revolta), sua consequência imediata é incitar e disseminar a cultura da discriminação e intolerância para mais e mais pessoas.
Ora, é evidente que as pessoas que odeiam, assim como todas as outras, não querem estar sozinhas. Sempre se tenta recrutar mais apoiadores, pois o sentimento de validação pelo outro reforça o ego, a autoestima, e compõe o anseio de pertencimento que é inerente no cenário social.
Os grupos de ódio formam verdadeiros clubes, identidades coletivas com suas manifestações. As redes sociais são a prova disso: motivados por um senso de anonimato e impunidade, as pessoas perdem a inibição para insultar o que lhes incomoda, e fazem isso de forma conjunta.
Não bastasse a facilidade de se espalhar o preconceito por meios digitais, muitas das posturas adotadas pelos agentes do discurso de ódio se coadunam com aquelas defendidas por autoridades e figuras públicas, como alguns parlamentares.
É natural que o cidadão, componente do corpo titular do poder (o povo), ao se identificar e eleger um parlamentar com ideais e políticas discriminatórias, venha a acreditar que está sendo devidamente representado e que por isso possui voz na democracia na qual se insere.
São incontáveis as manifestações que criam inimigos e buscam formas de combate contra eles nos debates políticos. Muitas autoridades pregam a redução das liberdades para determinados grupos, o extermínio de outros e a ampliação do poder punitivo do Estado como formas de solucionar os problemas sociais e construir uma coletividade ideal.
A partir daí é fácil entender porque os discursos se alinham, por exemplo, com a perseguição indígena no Maranhão, com a máxima do “bandido bom é bandido morto” no Rio de Janeiro, com os casos de violência contra homossexuais em São Paulo, e tantos outros.
Mas de onde surge esse ódio? Por que se odeia e como lidar com essas manifestações?
Em uma análise biopsicológica (ou química), o ódio é um estado de excitação, de fixação com o odiado, e o sentimento coincide com a mesma ativação do cérebro responsável pela percepção do desdém e do nojo.
O ódio pode surgir de várias formas, dependendo do parâmetro escolhido. Pode surgir de conflitos históricos, culturais, religiosos; de confrontos políticos e tensões econômicas; ou ainda de crenças e preconceitos pessoais que cada um de nós sustenta.
Historicamente, pode se exemplificar as raízes do ódio com os conflitos tribais na África entre os tutsis e os hutus, ou a guerra religiosa entre fundamentalistas radicais muçulmanos e não muçulmanos.
De forma política, são a ambição pelo poder e a desigualdade social os principais fatores que levam à drástica polarização e ao fanatismo, muitas vezes responsáveis pela doutrinação ideológica que comina em ditaduras e golpes de estado.
Em uma perspectiva individual, para Hermann Hesse, “se você odeia alguém, é porque odeia alguma coisa nele que faz parte de você. O que não faz parte de nós não nos perturba”. De fato, lidar com suas frustrações pessoais e “conhecer-te a ti mesmo” pode parecer mais difícil que entender, ou pelo menos respeitar, as escolhas dos outros.
Muitos consideram ainda que odiar é não suportar as diferenças, é combater o que não se quer ou aquilo que não se pode impedir. Mas o que há de errado com o dessemelhante? Nas palavras de Drummond: “o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todos o ser humano é um estranho ímpar.”.
Fato é que não temos respostas suficientes para explicar ou justificar o fenômeno. O que sabemos é que o ódio enquanto discurso pode ter consequências irreversíveis, e por isso deve ser cautelosamente analisado.
Os primeiros passos são a compreensão e a ação, e isso significa reconhecer sua existência – muitas vezes velada – e perceber como é fomentado na história, nas conversas das pessoas e na propaganda, denunciando e explicando as consequências àqueles que o difunde.
É certo que a proibição do discurso de ódio, por si só, não resolveria os problemas de injustiça estrutural e da ausência de reconhecimento social que atingem as minorias. Para tanto é essencial que sejam implantadas ações afirmativas, ações públicas eficientes para reduzir as desigualdades que penalizam esses grupos, e paralelamente incentivem a tolerância e a valorização das diversidades.
Todas as estratégias, contudo, têm um denominador comum: a necessidade de posicionamento estatal pela primazia da dignidade da pessoa humana, da igualdade e dos direitos fundamentais. É óbvio que se o Estado se omite diante das públicas e crescentes manifestações de ódio, ou ele mostra que não se importa com a conduta do ofensor, ou pior: que concorda com ela!
A dor e a sensação de inferioridade dos alvos destes discursos fortalece a simbologia de que o Estado brasileiro tem se tornado cúmplice da barbárie, o que só se intensifica com as recentes notícias envolvendo o Presidente da Republica, juízes, deputados, senadores e tantos outros nomes do primeiro escalão.
Um ditado já dizia que as pessoas inteligentes podem odiar, mas nunca as sábias. Estas lutam contra o ódio, como sabemos de Martin Luther King, Madre Teresa, e tantos outros.
Aos que odeiam deixamos apenas um conselho: o caminho é longo para a sabedoria, mas para a ignorância, basta ficar parado.
REFERÊNCIAS:
SILVA, D. C. P.; MARTINS, G. R.. O Discurso Parlamentar de Ódio: um estudo à luz do estado democrático de direito e das tendências jurisprudenciais. (2017).
EL PAIS. O que é o ódio? Por acaso tem cura? Por Ignacio Morgado Bernal. 16/12/2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/12/ciencia/1513073061_342064.html>.
ESTADÃO. “Discurso de ódio surge nas fissuras da democracia”, diz pesquisadora. Por Paulo Beraldo. 06/11/2019. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,discurso-de-odio-surge-em-fissuras-da-democracia-diz-pesquisadora,70003078090>.
JORNAL NH. Intolerância e discriminação: reflexos do medo despertado pelas diferenças. Por Gabriela da Silva e Kelly Betina. Disponível em:<https://www.jornalnh.com.br/_conteudo/2016/07/noticias/358042-intolerancia-e-discriminacao-reflexos-do-medo-despertado-pelas-diferencas.html>.
O GLOBO. Cientista político americano alerta para os perigos da polarização. Por Bolivar Torres. 25/08/2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/cientista-politico-americano-alerta-para-os-perigos-da-polarizacao-23900377>.
Arte da capa: Lucas Lacerda
Deborah Silva é pós graduanda em Direito Constitucional.
Galeria: Artistas pra seguir na quarentena
Apoie os artistas nessa quarentena. Em tempos de cólera, amar é um ato revolucionário.
Esse texto é imprescindível pros dias de hoje. Meus parabéns Deborah!
Sensacional análise. Infelizmente, ainda se faz bastante necessária nas conjunturas atuais.
Meus parabéns, Déborah! Excelente texto, leitura obrigatória!
Excelente. Bela reflexão. Infelizmente o ódio tem dominado as redes sociais e os debates de maneira geral. Isso é lamentável pois ódio gera ódio.
Ótima descrição de como o ódio vai além de uma mera omissão, caracterizando-se com contornos de uma prática extensiva e reiterada com objetivo fixo segregacionista. Parabéns a autora.
Ótima descrição de como o ódio vai além de uma mera omissão, caracterizando-se com contornos de uma prática extensiva e reiterada com objetivo fixo segregacionista. Parabéns a autora.
Texto bem articulado e claro em suas reflexões. De fato, uma leitura ainda muito necessária!
Ainda bem que, no meio de tanto caos, podemos ler coisas tão lúcidas. Excelente texto e muito necessário. Muito obrigada, Déborah!
Ótimo texto! Tema muito relevante e necessário ser discutido!
Deborah sempre inteligentíssima! Excelente texto!!!
Excelente texto! Discussão necessária com informação de qualidade e lucidez. Obrigada!
Excelente texto! Discussão necessária com lucidez e informação de qualidade. Obrigada Deborah!
Análise incrível, um texto extremamente atual e necessário!
Excelente! Um texto que infelizmente ilustra o atual cenário do país. A esperança é que a maioria tome consciência e opte pelo longo caminho para sabedoria… Parabéns a autora!
Excelente análise no panorama atual! Obrigado Déborah por esse texto necessário!
Sensacional! Análise extremamente necessária para os tempos atuais em que discurso de ódio é usado inconsequentemente.
A ascensão desse mal sentimento, ódio, faz mister a necessidade de respostas como esta.
Parabéns pelo texto que inspira movimento.